Sidney Julio Faria e Sousa1; Milton Ruiz Alves2
DOI: 10.17545/eoftalmo/2018.0004
RESUMO
Astigmatismo refere-se a uma aberração óptica ou a uma ametropia. Embora a aberração astigmática seja parte fundamental da ametropia astigmática, as duas entidades são conceitualmente diferentes. A primeira independe do olho, enquanto que a segunda está intimamente relacionada a ele. Este artigo analisa as diferenças entre aberração e ametropia, explorando as particularidades de cada conceito.
Palavras-chave: Astigmatismo; Refratometria; Erros de Refração.
ABSTRACT
Astigmatism designates either an optical aberration or an ametropia. Although the astigmatic aberration is a fundamental part of the astigmatic ametropia, these two entities are conceptually different. The former is independent of the eye, and the latter closely relates to it. This article explores the differences between the aberration and ametropia, by exploiting the particularities of each concept.
Keywords: Astigmatism; Refractometry; Refractive Errors.
RESUMEN
Astigmatismo es el nombre que se da a una aberración óptica o una ametropía. Aunque la aberración astigmática sea parte fundamental de la ametropía astigmática, las dos entidades son distintas en su concepto. La primera es independiente del ojo, y la última se relaciona íntimamente con él. Este artículo explora las distinciones entre la aberración y la ametropía, presentando las particularidades de cada concepto.
Palabras-clave: Astigmatismo; Refractometría; Errores de Refracción.
INTRODUÇÃO
Astigmatismo refere-se a uma aberração óptica ou a uma ametropia. Embora a aberração astigmática seja parte fundamental da ametropia astigmática, as duas entidades são conceitualmente diferentes. A primeira independe do olho, enquanto que a segunda está intimamente relacionada a ele. Este artigo analisa as diferenças entre aberração e ametropia, explorando as particularidades de cada conceito. O astigmatismo pode ser regular ou irregular. Neste estudo, abordaremos apenas o primeiro tipo.
ASTIGMATISMO COMO UMA ABERRAÇÃO ÓPTICA
Astigmatismo é uma aberração óptica associada às superfícies refrativas tóricas encontradas em lentes tóricas. Superfície tórica é o termo técnico para a superfície de um anel circular, que se caracteriza por conter duas curvas esféricas com raios diferentes que se cruzam perpendicularmente. Os meridianos principais das lentes tóricas são aqueles que contêm essas curvas.
Para cada ponto objeto, a superfície refrativa tórica gera duas linhas imagens perpendiculares entre si, centradas na linha sagital que passa pelo seu centro óptico. Se o ponto objeto estiver no infinito, cada linha imagem se torna uma linha focal1. A formação de uma linha focal proximal e de uma distal para cada ponto objeto configura uma aberração óptica chamada de aberração astigmática ou astigmatismo. É uma aberração porque se esperaria um único ponto focal para cada ponto objeto. O intervalo entre as duas linhas focais é conhecido como Intervalo de Sturm. Sua extensão, em dioptrias, quantifica o astigmatismo (Figura 1).
Cada linha focal deriva do meridiano principal que lhe é perpendicular: a linha focal proximal é gerada pelo meridiano mais curvo e a linha focal distal pelo meridiano mais plano. No centro dióptrico do Intervalo de Sturm, situa-se um borrão circular chamado de círculo de menor confusão (CLC). Apesar de haver uma abundância de imagens borradas dentro e fora desse intervalo, o CLC é o único relevante e o único com formato circular (Figura 1).
No nível de cada plano focal, a imagem derivada da refração de um único ponto objeto manifesta-se como uma linha focal, com direção peculiar. A coleção de todas as linhas focais, derivadas dos demais pontos do objeto de fixação, forma uma imagem estendida com um borramento direcional. Nas áreas onde a inclinação do borramento coincide com a direção dos detalhes da cena, a densidade de fundo da imagem aumenta; quando essa condição não se verifica, a densidade de fundo esmaece proporcionalmente à discordância direcional entre essas variáveis. A combinação irregular de manchas de maior e menor contraste causa um tipo de degradação da imagem conhecida como confusão. A figura 2 (A e C) mostra a letra L nos planos focais, proximal e distal. Observe que confusão se relaciona com a direção das linhas focais. A degradação da imagem é proporcional à quantidade de astigmatismo e ao grau de discordância entre a textura de fundo e a orientação das linhas focais. No plano CLC, o borramento direcional desaparece; as imagens ainda são nebulosas, porém não confusas, como mostrado na Figura 2 (B). A distribuição homogênea dos pontos neste local (não há linhas aqui) explica a ausência de borramento direcional; é aqui que o sistema astigmático reproduz melhor a silhueta do objeto imagem.
Sempre que há interesse na determinação do poder médio de uma lente tórica, o CLC é a referência para essa medida. O poder médio ou equivalente esférico de uma lente tórica (SEt) é a distância dióptrica entre o seu CLC e o infinito (Figura 1). Por exemplo, se o CLC estiver no infinito, o SEt é nulo. Se o CLC estiver a +3 D do infinito (0,33 metros de uma lente tórica convergente), o SEt = +3 D. O SEt de superfícies divergentes carrega sinal negativo.
As lentes tóricas com SEt = 0 são chamadas de cilindros cruzados. Eles representam a combinação de duas lentes cilíndricas de mesma potência, sinais opostos e eixos em ângulos retos. Por exemplo, a associação +1 cil 90º x -1 cil 180º é um cilindro cruzado. As lentes cilíndricas (ou cilindros) são formas particulares de lentes tóricas onde um dos meridianos principais tem potência zero. Elas produzem uma única linha focal que é sempre paralela a eixo de revolução do cilindro que lhes deu origem. O nome vem da semelhança dessas lentes com peças cilíndricas de material refrativo.
Pode-se considerar o cilindro cruzado como a combinação de dois cilindros ou a associação de uma lente esférica com uma cilíndrica. Na forma esferocilíndrica, a esfera sempre tem a metade do poder do cilindro, com sinal oposto. Assim, dado um cilindro de -2 cil 180º, temos apenas que combiná-lo com uma esfera de +1 D para criarmos um cilindro cruzado de +1 esf x -2 cil 180. Em termos práticos, essa combinação é idêntica à + 1 cil 90 x - 1 cil 180. Os cilindros cruzados têm grande importância tanto no diagnóstico como na correção de erros de refração astigmáticos.
Sempre que a direção da luz incidente forma um ângulo com o eixo óptico de uma lente esférica, a imagem resultante (astigmatismo radial ou fora do eixo) possui as mesmas características que a da aberração gerada pelas lentes tóricas. Embora o tenha algum significado na prática clínica, a principal importância desse tipo de astigmatismo é no campo da óptica instrumental2.
ASTIGMATISMO COMO AMETROPIA
A ametropia é a falha do olho desacomodado de focar na retina os raios de luz provenientes do infinito. Nas ametropias esféricas, como a hipermetropia e a miopia, o problema vem do desajuste entre o poder do olho e seu o comprimento axial, que gera uma imagem desfocada na retina. Neutralizar uma ametropia significa encontrar uma lente que coloque a imagem na retina. Na hipermetropia, onde o poder relativo do olho é insuficiente para o seu tamanho, essa correção é feita com lente esférica convergente; na miopia, onde o poder relativo do olho é excessivo para o seu tamanho, a correção exige lente esférica divergente.
Muitos olhos humanos possuem córneas que se comportam como lentes tóricas convexas, gerando para cada ponto de objeto, do infinito, três imagens de interesse clínico: uma linha focal proximal, um CLC e uma linha focal distal. Essas características configuram um tipo particular de ametropia chamado de ametropia astigmática ou astigmatismo (Figura 3). A forma como o olho astigmático enxerga depende principalmente de qual das três imagens está mais próxima da retina.
Neste ponto, a seguinte questão se torna pertinente: qual é a diferença entre a aberração astigmática e a ametropia astigmática? A resposta está na presença do olho. A existência do olho é irrelevante para a compreensão da aberração, mas crítica para a compreensão da ametropia. Embora ambos os conceitos tenham características em comum - duas linhas imagens e um CLC - a retina é o elemento que distingue o erro refrativo. A ametropia astigmática combina uma aberração astigmática, estimada pela extensão Intervalo de Sturm, com um erro esférico, quantificado pela distância do CLC em relação à retina (Figura 3). As ametropias astigmáticas são classificadas como miópicas, hipermetrópicas ou mistas de acordo com a posição dos limites do Intervalo de Sturm relativa à retina3. Elas são míópicas quando ambas as linhas focais estão na frente da retina, ou uma delas está na frente e a outra sobre á retina. Elas são hipermetrópicas, quando ambas as linhas focais estão atrás da retina, ou uma delas está atrás e a outra está sobre à retina. Quando o Intervalo de Sturm cavalga a retina, o astigmatismo é misto. O astigmatismo misto é um conceito ambíguo que admite um CLC na frente, atrás e sobre a retina. Reúne cenários diferentes sob um único nome. Esse problema decorre do uso do Intervalo de Sturm, em vez do CLC, como referência.
A poder esférico que coloca o CLC na fóvea é o equivalente esférico da ametropia astigmática (SEa).É o componente esférico da ametropia astigmática (Figuras 3 e 4B). A vinculação deste parâmetro à posição do CLC enfatiza a importância do último na caracterização da ametropia astigmática. Deve-se distinguir o equivalente esférico da lente tórica do equivalente esférico da ametropia astigmática. O primeiro representa o poder médio da lente tórica, definido pela distância dióptrica do seu CLC do infinito. O segundo se aplica às ametropias astigmáticas e especifica o poder óptico necessário para colocar o CLC na retina. Compare o SEt com o SEa nas Figuras 1 e 3.
Neutralizar uma aberração astigmática significa colabar o Intervalo de Sturm. À medida que ele se contrai, os comprimentos das linhas focais e o tamanho da CLC diminuem progressivamente até se fundirem em um único ponto. O colapso do Intervalo de Sturm exige lentes cilíndricas, uma vez que as lentes esféricas apenas alteram a sua posição em relação à retina. As lentes cilíndricas reduzem esse intervalo de três maneiras: puxando a linha focal distal no sentido da proximal, empurrando a linha focal proximal para a distal ou fazendo as duas ações simultaneamente (Figura 4A). Para maximizar o efeito dessas ações, é preciso alinhar o eixo do cilindro corretivo com a linha focal que se deseja mover (Figura 5). Assim, para puxar a linha focal distal (em direção à proximal), é necessário uma lente cilíndrica convergente, com seu eixo perfeitamente alinhamento à ela. Para empurrar a linha focal proximal (na direção da distal), é necessária uma lente cilíndrica divergente com seu eixo em perfeito alinhamento com ela. Finalmente, para desfazer o Intervalo de Sturm, atuando em ambas as linhas focais, é preciso usar um cilindro cruzado com o eixo do cilindro convergente alinhado com a linha focal distal e o eixo do cilindro divergente alinhado com a linha focal proximal.
Figura 5. Ação do cilindro. O cilindro convergente A gera uma linha focal A que é sempre paralela ao seu eixo. A linha focal A deve estar alinhada com a linha focal B (de outro sistema tórico) para exercer o máximo de atração sobre ela.
Com respeito à correção da aberração astigmática, esses três procedimentos são equivalentes. Por outro lado, eles têm efeitos distintos sobre o poder esférico da ametropia astigmática. Os cilindros convergentes colapsam o Intervalo de Sturm puxando as imagens para mais perto da córnea. Os cilindros divergentes fazem o mesmo empurrando as imagens para mais longe da córnea. Os cilindros cruzados não afetam a posição da imagem no CLC. Em outras palavras, os cilindros convergentes tendem a diminuir, os cilindros divergentes a aumentar e os cilindros cruzados a preservar o esforço acomodativo do olho.
Após a neutralização completa da aberração astigmática, resta apenas um ponto de imagem. Se ele estiver dentro do humor vítreo, pode-se movê-lo para a fóvea com uma lente esférica divergente. Se estiver atrás do olho, o procedimento requer uma lente esférica convergente. A correção final da ametropia astigmática geralmente termina em uma combinação esferocilíndrica. Por exemplo, +4 esf x -2 cil 30º expressa a combinação de uma lente esférica de +4 D com um cilindro de -2 cil 30º. No entanto, deve-se atentar para o fato de que o poder esférico da combinação não é o que é sugerido pela expressão refrativa (+4 D), mas o equivalente esférico da lente esferocilíndrica resultante (+3 D).
Concluindo, o astigmatismo é um termo dúbio porque identifica tanto uma aberração óptica quanto um erro refrativo. Sua classificação atual também é inadequada porque gera ambigüidades quando o Intervalo de Sturm cavalga a retina. Pode-se melhorar seu sistema de classificação utilizando o equivalente esférico como ponto de referência, considerando a sua importância crítica em muitos campos da óptica oftálmica, tais como o da cirurgia refrativa, lente intraocular, lente de contato e prescrição de óculos. Um nome distinto para a ametropia astigmática seria outro avanço. Uma opção para isso já existe na literatura4,5. A nossa preferência é por astigmopia.
REFERÊNCIAS
1. Faria-e-Sousa SJ, Victor G, Ruiz Alves M. Visual optics under the wavefront perspective. Arq Bras Oftalmol. 2014; 77(4), 267-270. https://doi.org/10.5935/0004-2749.20140068
2. Rubin M. Radial Astigmatism In:Optics for Clinicians. 2nd ed, Gainsville, FL:TRIAD Scientific;1977. p. 286-289
3. Duke-Elder S, Abrams D. The optical condition in astigmatism. In: Duke-Elder S, editor. Ophthalmic Optics and Refraction, System of Ophthamology, Vol. V. London: Henry Kimpton; 1970. p. 283 - 284.
4. Tour RL. Astigmatism. In: Gettes BC, editor. Refraction. London: J & A Churchill Ltd; 1965. p. 27-47.
5. Astigmia. [Internet]. Available from: www.merriam-webster.com/medical/astigmia
Fonte de financiamento: declaram não haver.
Parecer CEP: não aplicável.
Conflito de interesses: declaram não haver.
Recebido em:
5 de Fevereiro de 2018.
Aceito em:
15 de Março de 2018.