Artigo

Acesso aberto Revisado por pares

1724

Visualizações

 


Casos Clínicos Discutidos

Cirurgia refrativa em hipermetropia alta. Relato de 2 casos com abordagens diferentes

Refractive surgery in high hyperopia. Report of 2 cases with different approaches

Patrícia Gomes Silva1; Natália Carvalho1; Livia Cristina Rios1; Pablo Felipe Rodrigues2; Nelson Chamma Capelanes1,2; Bernardo Kaplan Moscovici1,2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2021.0031

RESUMO

Dois casos de pacientes com hipermetropia com ângulo kappa grande foram descritos. Diferentes plataformas de laser excimer foram usadas em cada caso para tratar o erro de refração. Além disso, diferentes perfis de ablação foram utilizados (guiados e otimizados pelo Wavefront) e pontos de centralização (centro da pupila e a metade da distância entre o ápice da córnea e o centro pupilar).

Palavras-chave: Córnea; Cirurgia refrativa; Laser excimer; Topografia da córnea; Hipermetropia.

ABSTRACT

Two cases of patients with hyperopia with high kappa angles were described. We used different excimer laser platforms in each case to treat the refractive error. Also, we used different ablation profiles (wavefront-guided and optimized) and centration points (pupil center and halfway between corneal apex and pupil center).

Keywords: Cornea; Refractive surgery; Excimer laser; Corneal topography; Hyperopia.

INTRODUÇÃO

Estamos em um momento em que a demanda por qualidade visual alcançou um alto nível de excelência. Pacientes que buscam por cirurgia refrativa a laser tem essa espectativa e desejam mudanças em sua qualidade de vida. As cirurgias refrativas para hipermetropia ainda são desafiadoras e amplamente discutidas1-15.

É muito importante que os objetivos do tratamento sejam definidos na cirurgia refrativa. Com os avanços recentes, o ângulo kappa tornou-se uma consideração importante para a melhora dos resultados visuais. O ângulo kappa é definido como o ângulo entre o eixo visual e o eixo pupilar11. O eixo pupilar é a linha que passa pelo centro da pupila perpendicular à córnea. O eixo visual conecta a fovea com o ponto de fixação. Ele é clinicamente identificado pelo deslocamento nasal do reflexo da luz na córnea e do centro pupilar. Pacientes com hipermetropia tendem a ter um ângulo kappa grande, o que pode levar a erros de alinhamento durante a fotoablação em cirurgia refrativa a laser12,13. Um ângulo kappa maior aumenta o risco de descentralização devido ao aumento da distância entre o centro pupilar e o eixo visual. Além disso, o centro pupilar muda com o tamanho da pupila sob diferentes condições de iluminação. A ablação fora do centro pode induzir astigmatismo e deixar déficits visuais como distorção, diplopia, alteração do brilho e diminuição da acuidade visual no paciente14,15. Recomenda-se, nesses casos, centralizar os perfis de ablação no eixo visual ou próximo a ele para reduzir aberrações de alta ordem14.

O objetivo desses casos é comparar e discutir as diferentes formas de centralizar a cirurgia refrativa na hipermetropia. A melhor técnica a ser usada ainda não foi definida, no entanto, a maioria dos lasers excimer foca no centro pupilar, o que pode levar a resultados finais insatisfatórios, como veremos abaixo1.

 

RELATOS DE CASOS

Caso 1

Paciente do sexo masculino, 26 anos, encaminhado ao serviço de córnea para avaliação da cirurgia refrativa para hipermetropia. A análise dos dados do paciente é mostrado na Tabela 1A. O paciente apresentou motilidade ocular e teste de Titmus dentro dos limites normais. Como o exame pré-operatório foi considerado normal (Figuras 1 e 2), o procedimento Femto-Lasik guiado pelo Wavefront (centrado na pupila) foi a opção de tratamento. A tomografia de Scheimpflug mostrou um ângulo kappa de 0,34 mm no OD e 0,40 mm no OE neste caso. O laser excimer utilizado foi o VISX 4 (Johnson & Johnson, New Brunswick, New Jersey, EUA) juntamente com o laser de femtosegundo IFS 150 (Johnson & Johnson, New Brunswick, Nova Jersey, EUA) e o aberrômetro iDesign (Johnson & Johnson, New Brunswick, New Jersey, EUA). Este aberrômetro usa a tecnologia Hartmann-Shack e centraliza o tratamento no centro da pupila, com um dispositivo de rastreamento ocular de registro da íris. O paciente apresentou aberrações oculares de alta ordem normais (HOA) no pré-operatório (Figura 2). Um mês após o procedimento, o paciente apresentou acuidade visual não corrigida (AVNC) de 20 / 40p em ambos os olhos e acuidade visual corrigida (AVC) de 20 / 20p em ambos os olhos, mas com queixa de dificuldade noturna. Na consulta de retorno, o paciente manteve a queixa e apresentou refração estática de +1,00 S -1,00 C 90º no OD com acuidade visual 20/20 e +1,00 S -1,00 C 170º no OE com AV de 20/40. A topografia estava ligeiramente descentrada (Figura 3), com aumento das HOA (Figura 4). As queixas na visão podem ser explicadas tanto pelas HOA quanto pelo erro de refração residual.

 

 

 


Figura 1. A/B: Exame de tomografia pré-operatório do caso um paciente.

 

 


Figura 2. A/B: HOA pré-operatória do caso um paciente.

 

 


Figura 3. A/B: Exame de topografia pós-operatória do caso um paciente

 

 


Figura 4. HOA pós-operatória do caso um paciente.

 

No acompanhamento, o retratamento guiado por aberrometria total foi realizado, 3 meses após a primeira cirurgia. O perfil de ablação sugerido pelo iDesign (Figura 5) estava de acordo com as alterações evidenciadas na topografia.

 


Figura 5. A/B: planejamento de retiro HOA.

 

O retalho foi novamente levantado e um novo tratamento também centrado na pupila, guiado pelo Wavefront foi realizado.

Após 1 mês, o paciente apresentou refração plana em ambos os olhos e AVNC de 20/20 em ambos os olhos. No momento, o paciente não tem queixas, com diminuição das HOA (Figura 6), principalmente coma. O perfil corneano melhorou após a cirurgia (Figura 7), os valores ceratométricos estabilizaram (como visto na Tabela 2A) 3 meses após a cirurgia.

 


Figura 6. Resultado final de HOA.

 

 


Figura 7. Resultado final da topografia.

 

 

 

Caso 2

Paciente do sexo masculino de 30 anos, encaminhado ao serviço de córnea para avaliação de cirurgia refrativa para hipermetropia. A análise dos dados do paciente é mostrado na Tabela 1B. O paciente apresentou motilidade ocular e teste de Titmus dentro dos limites normais. Como o exame pré-operatório foi considerado normal (Figuras 8 e 9), o Femto-LASIK otimizado (centrado no ápice corneano) foi realizado com o laser FS200 (Alcon, Fort Worth, TX, EUA). O laser excimer usado foi o laser EX500 Wavelight (Alcon, Fort Worth, TX, EUA). O ângulo kappa foi de 0,96 mm (Figura 9) medido pelo dispositivo Allegro Topolyzer Vario (Alcon, Fort Worth, TX, EUA), e a metade da distância entre o ápice corneano e o centro pupilar foi centralizada. O perfil de ablação e o planejamento do tratamento podem ser vistos na Figura 10. Após o procedimento, o paciente apresentou AVNC de 20/20 em ambos os olhos com refração estática no OD: plano -0,25 C 050 e OE: plano -1,25 C 180, sem queixas de dificuldade noturna e topografia corneana normal (Figura 11).

 


Figura 8. A/B: Exame de tomografia pré-operatório do paciente do caso dois

 

 


Figura 9. A/B: Exame topográfico do paciente do caso dois mostrando maior ângulo kappa.

 

 


Figura 10. A /B: Planejamento cirúrgico do caso dois, mostrando a descentralização do procedimento para 0,425 mm e 0,390 mm respectivamente.

 

 


Figura 11. Topografia final do paciente do caso dois.

 

DISCUSSÃO

Há uma discussão se você deve centralizar sua cirurgia refrativa no reflexo de Purkinje ou no centro da pupila, mas a maior parte da literatura recomenda que a centralização seja realizada primeiramente no reflexo de Purkinje ou no ápice da córnea, usando o valor do ângulo kappa medido pela tomografia ou topografia. Também pode ser centrada na distância entre o centro da pupila e o reflexo corneano, especialmente em pacientes com um ângulo kappa grande. Os relatórios acima demonstram uma variação importante na centralização1.

Resultados da literatura sobre centralização

Nepomuceno et al realizaram um estudo com pacientes hipermetrópicos, realizando o LASIK, com foco no reflexo coaxial, em 61 pacientes com equivalente esférico +2,73 ± 1,41 D, utilizando o laser LadarVision (Alcon, Fort Worth, TX, EUA), e encontraram 81,5% com AVNC maior ou igual a LogMar 0,2 e 44,4% maior ou igual a LogMar 0. Eles não encontraram perda de linhas corrigidas de visão 2. Chang et al compararam o tratamento da hipermetropia usando LadarVision (+ 2,17 ± 0,93) centrado no Purkinje com bons resultados finais: (LogMar): 0.22 ± 0.173.

Chang et al. realizaram cirurgias comparando a centralização no Purkinje ou na pupila, em pacientes com hipermetropia, com média de +1,875 D, utilizando VISX (Johnson & Johnson, New Brunswick, New Jersey, EUA) e encontraram melhores resultados em pacientes centralizados no Purkinje4.

Kermani et al também realizaram tratamento de hipermetropia com + 2,57 ± 1,56 D, usando NIDEK (NIDEK, Maehama, Japão) comparando a centralização no Purkinje e na pupila e encontraram melhores resultados quando centralizados no Purkinje5.

De Ortueta et al. centraram-se no Purkinje em pacientes com hipermetropia (+ 2,76 ± 0,90 D) e encontraram um resultado refrativo pós-operatório de + 0,09 ± 0,32 D, com 94% com menos de 0,50 D, utilizando o laser Esiris (Schwind, Klenoistheim, Alemanha)6.

Soler et al. compararam a centralização no Purkinje e na pupila em pacientes hipermetrópicos (+ 2,69 ± 0,91 D) usando Allegretto 200 Hz (Alcon, Fort Worth, TX, EUA) e encontraram resultados refrativos semelhantes7.

Reinstein et al. encontraram resultados semelhantes em pacientes hipermetrópicos (+ 3,85 ± 0,98 D), usando MEL 80 (Zeiss, Oberkochen, Alemanha)8.

Problemas de centralização

A maioria dos tratamentos guiados pelo centro de aberrometria ocular total (TOA) no centro pupilar nos leva a pensar que o resultado final, deste primeiro caso, seria satisfatório, no entanto, precisávamos de um novo tratamento para corrigir as aberrações induzidas de alta ordem. A cirurgia realizada, guiada pela TOA e com um mecanismo preciso de rastreamento ocular, nos levou à hipótese de centralização incorreta do dispositivo ou consequência da centralização do laser Excimer na pupila, o que pode ter causado coma e piora da qualidade visual do paciente. No retratamento, o aberrômetro capturou com precisão o coma induzido, portanto, o tratamento com o laser excimer deveria corrigir a aberração induzida. Desta forma, optamos por um novo tratamento guiado pela TOA, uma vez que o dispositivo capturou corretamente essa descentralização e propôs um tratamento adequado. É difícil dizer que isso poderia ocorrer em todos os casos de hipermetropia alta com aumento do ângulo kappa, e estudos mais abrangentes devem ser realizados para se verificar se tratava de um caso isolado9,10.

No segundo caso, com um ângulo kappa alto extremamente incomum, temíamos centrar diretamente no ápice corneano, então decidimos centralizar a metade da distância entre o centro da pupila e o ápice corneano, conforme descrito por alguns autores9,10.

Mostramos 2 casos com aumento do ângulo kappa, o segundo caso com um padrão incomum. Mesmo assim, é difícil, com apenas 2 casos compará-los, não só por causa das diferenças de ângulo kappa, mas também pelas diferentes plataformas, centradas em diferentes pontos, e diferentes perfis de ablação: um caso otimizado e outro guiado por Wavefront. No primeiro caso, como o ângulo kappa era moderado, pensamos que centralizar o tratamento no centro pupilar e realizar um tratamento guiado por frente de ondas não deveria ser um problema, mas tivemos um resultado incomum que exigiu retratamento. Não podemos afirmar que os tratamentos centrados na pupila não devem ser realizados em pacientes com ângulo kappa semelhante ao do paciente do caso 1, pois o retratamento teve bons resultados. O que sugerimos é verificar se o perfil de ablação é semelhante ao que você deseja, nos casos de tratamentos personalizados.

Pacientes com hipermetropia moderada a alta têm maior probabilidade de ter um ângulo kappa aumentado. Muitos autores preferem centralizar esses casos no ápice da córnea ou em algum ponto entre o ápice e o centro pupilar. Alguns autores acreditam que a centralização no centro pupilar, em casos com um ângulo kappa, pode levar a um aumento da HOA, especialmente coma1,2,7-10.

Esses dois casos trouxeram apenas a necessidade de estudos amplos e mais detalhados em pacientes com hipermetropia com ângulos kappa moderados a grandes para determinar qual método de centralização deveria ser o padrão-ouro.

 

REFERÊNCIAS

1. Rios LC, Silva PGD, Canamary Junior AM, Rodrigues P, Regatieri CVS, Campos M, et al. Centration in refractive surgery. Arq Bras Oftalmol. 2020;83(1):76-81.

2. Nepomuceno RL, Boxer-Wachler BS, Kim JM, Scruggs R, Sato M. Laser in situ keratomileusis for hyperopia with the LADARVision 4000 with centration on the coaxially sighted corneal light reflex. J Cataract Refract Surg. 2004;30(6):1281-6.

3. Chang JSM, Law AKP, Ng JCM, Chan VKC. Comparison of refractive and visual outcomes with centration points 80% and 100% from pupil center toward the coaxially sighted corneal light reflex. J Cataract Ref Surg. 2016;42(3):412-9.

4. Chan CCK, Boxer-Wachler BS. Centration analysis of ablation over the coaxial corneal light reflex for hyperopic LASIK. J Refract Surg. 2006;22(5):467-71.

5. Kermani O, Oberheide U, Schmiedt K, Gerten G, Bains HS. Outcomes of hyperopic LASIK with the NIDEX NAVEX platform centered on the visual axis or line of sight. J Refract Surg. 2009;25(1 Suppl):S98-S103.

6. Ortueta D, Schreyger FD. Centration on the cornea vertex normal during hyperopic refractive photoablation using videokeratoscopy. J Refract Surg. 2007;23(2):198-200.

7. Soler V, Benito A, Soler P, Triozon C, Arné JL, Madariaga V, et al. A randomized comparison of pupil-centered versus vertex-centered ablation in LASIK correction of hyperopia. Am J Ophthalmol. 2011;152(4):591-9.e2.

8. Reinstein DZ, Gobbe M, Archer TJ. Coaxially sighted corneal light reflex versus entrance pupil center centration of moderate to high hyperopic corneal ablations in eyes with small and large angle kappa. J Refract Surg. 2013;29(8):518-25.

9. Mosquera SA, Ewring T. New asymmetric centration strategy combining pupil and corneal vertex information for ablation procedures in refractive surgery theoretical background. J Refract Surg. 2012;28(8):567-73.

10. Arba-Mosquera SA, Ortueta D. LASIK for hyperopia using an aberration-neutral profile with an asymmetric offset centration. J Refract Surg. 2016;32(2):78-83.

11. Hashemi H, Khabazkhoob M, Yazdani K, Mehravaran S, Jafarzadejpur E, Fotouhi A. Distribution of angle kappa measurements with Orbscan II in a population-based survey. J Refract Surg. 2010;26(12):966-71.

12. Basmak H, Sahin A, Yildirim N, Papakostas TD, Kanellopoulos JA. Measurement of angle kappa with synoptophore and Orbscan II in a normal population. J Refract Surg. 2007;23(5):456-60.

13. Kermani O, Schmeidt K, Oberheide U, Gerten Gl. Hyperopic laser in situ keratomileusis with 5.5-, 6.5-, and 7.0-mm optical zones. J Refract Surg. 2005;21(1):52-8.

14. Reinstein DZ, Archer TJ, Gobbe M. Is Topography-guided ablation profile centered on the corneal vertex better than wavefront-guided ablation profile centered on the entrance pupil? J Refract Surg. 2012;28(2):139-43.

15. Yang Y, Thompson K, Burns SA. Pupil location under mesopic, photopic, and pharmacologically dilated conditions. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2002;43(7):2508–12.

 

INFORMAÇÃO DOS AUTORES

Financiamento: Declaram não haver

Conflitos de Interesse: Declaram não haver

Recebido em: 13 de Novembro de 2020.
Aceito em: 25 de Agosto de 2021.


© 2024 Todos os Direitos Reservados