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Casos Clínicos Discutidos

Relato de caso de paciente imunocompetente com quadro de sarampo e desenvolvimento de ceratite herpética

An immunocompetent patient with a clinical picture of measles and herpetic keratitis: a case report

Julia Alves Utyama; Guilherme Novoa Colombo Barboza; Roberta de Júlio Matheus; Marcello Novoa Colombo Barboza

DOI: 10.17545/eOftalmo/2021.0024

RESUMO

O Vírus Herpes Simples (HSV) é um patógeno comum, caracterizado por sua alta prevalência mundial. O HSV-1 é o responsável pelos quadros oculares e sua transmissão ocorre através da saliva infectada ou do contato direto com lesões ativas. A infecção primária pode ser assintomática e autolimitada, levando à latência do vírus nos gânglios sensoriais, como o gânglio trigêmeo. A reativação da infecção normalmente decorre de fatores imunocomprometedores, infecções febris, traumas ou exposição solar e sua severidade está diretamente relacionada à capacidade imunológica do hospedeiro. Outro aspecto relevante é o número crescente de casos de sarampo no Brasil e no mundo nos últimos anos. Trata-se de uma doença viral altamente contagiosa, que se manifesta com exantemas, febre alta, coriza e conjuntivite. E frente à este cenário, é fundamental entender que as alterações imunológicas provocadas pelo vírus podem ser o principal fator determinante do curso da doença e suas complicações, onde otite média, pneumonia e ceratoconjuntivite são as mais comuns. O objetivo deste estudo é relatar um caso de ceratite herpética multifocal concomitante à infecção ativa por sarampo em paciente jovem e imunocompetente, além de ressaltar a importância do pronto conhecimento da infecção pelo HSV e sua característica oportunista.

Palavras-chave: Ceratite herpética; Herpes Simples; Sarampo; Conjuntivite.

ABSTRACT

The herpes simplex virus (HSV) is a common pathogen that is characterized by its high worldwide prevalence. HSV1 can cause ocular conditions and is spread through infected saliva or direct contact with active lesions. Primary infection can be asymptomatic and self-limited, leading to virus latency in sensory ganglia, such as the trigeminal ganglion. Reactivation of the infection usually results from immunocompromising factors, febrile infections, trauma, or exposure to sunlight, and its severity is directly related to the host’s immune capacity. Another relevant aspect is the increasing incidence of measles in Brazil and worldwide in recent years. Measles is a highly contagious viral disease that manifests with rashes, high fever, runny nose, and conjunctivitis. Against this background, it is essential to understand that immunological changes caused by the virus may be the main determinant of the course of the disease and its complications, of which otitis media, pneumonia and keratoconjunctivitis are the most common. The objectives of this study were to describe a case of multifocal herpetic keratitis concomitant with active measles infection in a young, immunocompetent patient and to emphasize the importance of awareness of HSV infection and its opportunistic nature.

Keywords: Herpetic keratitis; Herpes simplex; Measles; Conjunctivitis.

INTRODUÇÃO

O vírus do herpes simples (HSV) é um patógeno humano comum, classificado em HSV-1 e HSV-2. O HSV-1 caracteriza-se por quadros extragenitais, disseminando-se através da saliva infectada ou lesões ativas, enquanto que o HSV-2 envolve quadros perigenitais, sexualmente transmissíveis1. Além disso, é caracterizado por sua endemia em praticamente todas as sociedades humanas2. Estudos mostram que 18,2% do cadáveres de 0-20 anos apresentam o HSV, detectados teste molecular de reação em cadeia da polimerase (PCR), no gânglio trigêmeo, chegando a quase 100% dos cadáveres acima de 60 anos3.

A infecção ocular herpética pode ser primária ou recorrente. A infecção primária pelo HSV pode apresentar-se como ceratoconjuntivite aguda ou assintomático e autolimitado. Após o primeiro contato, o vírus permanece em estágio latente nos gânglios sensoriais até a reativação da replicação viral. A recorrência da infecção é, na maioria das vezes, decorrente de fatores desencadeantes como infecções febris, exposição solar, exaustão física ou emocional, podendo acometer desde as pálpebras, conjuntiva, córnea, íris ao seguimento posterior do globo ocular4,5.

A proteção contra o vírus é predominantemente dependente de células T, atribuindo-lhe uma característica oportunista. Sendo assim, além da virulência do vírus e vulnerabilidade do tecido acometido, o mecanismo de defesa imune do indivíduo pode determinar a gravidade e apresentação da infecção6,7.

Nos últimos anos, casos de sarampo têm sido reportados em várias partes do mundo. Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil apresenta surtos em suas 5 regiões com 15.7434 casos notificados e 7.939 casos confirmados no período de dezembro de 2019 a setembro de 2020, mais concentrados nos estados do Pará, São Paulo, Paraná e Santa Catarina8. Trata-se de uma doença exantemática, infecciosa e altamente contagiosa, causada pelo vírus RNA da família Paramoxyviridae, transmitido de 4 a 6 dias antes do exantema até 4 dias após. O quadro clínico é caracterizado por febre alta, exantema máculo-papular generalizado, manchas de Koplik em orofaringe, coriza e conjuntivite9. O quadro ocular do sarampo geralmente apresenta reação conjuntival papilar-folicular com hiperemia podendo ou não comprometer a córnea e evoluir com complicações como, ceratite, perfuração ocular e corirretinite10,11. Além disso, estudos mostram que a infecção pode acarretar anormalidades na resposta imunológica de monócitos e linfócitos, imunossuprimindo temporariamente os indivíduos afetados e aumentando o risco de infecções secundárias no período12-14.

Frente ao atual aumento da incidência de sarampo no país e à elevada prevalência do HSV na população, o entendimento do caráter imunossupressor do sarampo e oportunista do HSV, se tornam fundamental para o diagnóstico e instituição do tratamento apropriados. Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo relatar um quadro ocular atípico de ceratite herpética em paciente jovem imunocompetente com infecção ativa por sarampo.

 

RELATO DO CASO

Homem, 24 anos, comparece ao serviço ambulatorial do Hospital Oftalmológico Visão Laser, da cidade de Santos-SP com queixa de vermelhidão e sensação de corpo estranho em olho direito (OD) há 8 dias, acompanhados de tosse e coriza. Refere também que 4 dias após o início dos sintomas evoluiu com febre alta e erupções cutâneas avermelhadas que iniciaram em região retro auricular e progrediu para o corpo, estando presentes até o momento. Com o aparecimento das lesões, procurou o pronto socorro onde foi submetido ao exame de sorologia que resultou em IgM positivo para sarampo. Nega comorbidades e antecedentes oftalmológicos relevantes. O exame físico geral mostrou exantema cutâneo máculo-papular de coloração vermelha em membros, tronco e face com áreas descamativas. Ao exame oftalmológico: acuidade visual (AV) sem correção de 20/20 em ambos os olhos (AO). À biomicroscopia, hiperemia conjuntival 2+ com reação folicular em conjuntivas tarsais e secreção mucosa em OD; olho esquerdo sem alterações. Foi prescrito colírios lubrificantes 1 gota 4 vezes ao dia, compressas frias 3 vezes ao dia e retorno em 7 dias.

Após 3 dias da primeira avaliação, o paciente retorna referindo diminuição da AV em OD e fotofobia. Ao exame, OD apresentava córnea com lesões dendríticas em toda superfície corneana fluoresceína positivo, configurando ceratite herpética difusamente distribuída (Figura 1). Prescrito Aciclovir 400mg via oral 5 vezes ao dia (2g por dia) por 10 dias, mantido o colírio lubrificante 4 vezes ao dia e reavaliação em 5 dias. Ao retorno o paciente se apresentava sem queixas e OD mostrou diminuição significativa no tamanho e número das lesões herpéticas que se resolveram completamente com 10 dias de tratamento anti-viral.

 


Figura 1. Lesões dendríticas multifocais coradas com fluoresceína, visualizadas sob o filtro da luz de cobalto.

 

DISCUSSÃO

O HSV é um patógeno mundialmente endêmico e seu único reservatório conhecido é o homem. Em pesquisa do vírus por PCR no gânglio trigêmeo, estudos mostraram que o mesmo está presente em pelo menos 90% da população mundial de até 60 anos na forma latente15-17. A ceratite herpética é o quadro mais comum na recorrência da infecção e sua fisiopatologia está diretamente relacionada à replicação viral no epitélio corneano. Contudo manifestações clínicas distintas podem ocorrer, a depender da camada corneana acometida e do mecanismo fisiopatogênico envolvido4. Geralmente, a ceratite epitelial infecciosa cursa com vesículas, úlceras dendríticas e localizadas características, porém, em indivíduos incapazes de conter o vírus por deficiência da imunológica, as manifestações clínicas podem ser mais evidentes. A literatura sugere que qualquer condição depressora da resposta imune celular-mediada, como pós-transplante18,19, diabetes mellitus20, sarampo21,22, ou HIV23, predispõem quadros atípicos, mais graves e recorrentes de ceratite herpética4,24,25.

O sarampo é uma doença viral aguda e altamente contagiosa, sendo o homem seu único reservatório. Além da febre caracteristicamente alta, a vasculite generalizada é a maior responsável pelas manifestações clínicas características, porém sua morbimortalidade é mais atribuída ao aumento da suscetibilidade a infecções secundárias9,26. Muitos estudos mostram que a resposta imune ao vírus do sarampo é paradoxalmente associada à sua supressão contra outros antígenos, podendo permanecer assim semanas após a resolução do quadro24,26,27. Anormalidades tanto na resposta imune inata de monócitos, quanto na adaptativa linfocitária foram relatadas após a infecção pelo vírus do sarampo28,29.

Apesar de existirem dados na literatura que fundamentam a relação da infecção pelo vírus do sarampo com HSV, há poucos casos relatados focados em esclarecer os mecanismos fisiopatogênicos que podem interligar essas doenças. Portanto, frente ao caso relatado, à elevada incidência de sarampo e a alta prevalência do HSV na população, conclui-se que é fundamental reconhecer a ceratite herpética como possível complicação nos quadros de sarampo. Além disso, devido ao estado imunossupressor em que o paciente se encontra, é importante valorizar as possíveis variações na apresentação clínica, visto que o acompanhamento e tratamento adequados é imprescindível para a preservação da visão e estruturas oculares.

 

REFERÊNCIAS

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INFORMAÇÃO DOS AUTORES

Financiamento: Declaram não haver

Conflitos de Interesse: Declaram não haver

Recebido em: 21 de Julho de 2020.
Aceito em: 15 de Dezembro de 2020.


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