Danielle Ribeiro Brega Weiss; Lara de Cássia Dutra Teixeira; Marta Halfeld Ferrari Alves Lacordia
DOI: 10.17545/eOftalmo/2024.0010
RESUMO
A apresentação de estrabismo divergente associado à hipotropia na alta miopia é rara, com poucos relatos descritos na literatura. Possui patogênese incerta e o tratamento cirúrgico não está padronizado. Descrevemos um caso de exotropia associado a hipotropia unilateral em paciente de 18 anos com anisometropia miópica que foi submetida à correção cirúrgica com bom resultado no pós-operatório.
PALAVRAS-CHAVE: Exotropia; Miopia patológica; Estrabismo; Heterotropia; Exotropia secundária.
ABSTRACT
Divergent strabismus associated with hypotropia in high myopia is rare, with few reports in the literature. Its pathogenesis is uncertain and surgical treatment is not standardized. We describe the case of an 18-year-old patient with myopic anisometropia with exotropia associated with unilateral hypotropia who underwent surgery with a good postoperative outcome.
Palavras-chave: Exotropia; Pathologic myopia; Strabismus; Heterotropia; Secondary exotropia.
ABSTRACT
Divergent strabismus associated with hypotropia in high myopia is rare, with few reports in the literature. Its pathogenesis is uncertain and surgical treatment is not standardized. We describe the case of an 18-year-old patient with myopic anisometropia with exotropia associated with unilateral hypotropia who underwent surgery with a good postoperative outcome.
Keywords: Exotropia; Pathologic myopia; Strabismus; Heterotropia; Secondary exotropia.
INTRODUÇÃO
Estudos são realizados para melhor compreender a etiopatogenia do estrabismo na alta miopia. A combinação esotropia-hipotropia ou Heavy Eye Syndrome (HES) foi demonstrada como sendo provocada pelo prolapso súpero-temporal do olho, devido à distensão axial deste. Além disso, o aumento do bulbo ocular levaria a uma instabilidade dos tecidos orbitários, levando a alterações nas polias intermusculares. Esses fatores em conjunto, levam ao deslocamento dos músculos reto superior (mRS) e reto lateral (mRL). A associação de exotropia-hipotropia e alta miopia é raramente mencionada1-4.
Reportamos um caso de anisometropia miópica associada a exotropia e hipotropia e realizamos revisão da literatura sobre estrabismo na alta miopia. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 18 anos, relatava estrabismo discreto ao nascimento, mas com piora nos últimos anos (“meu olho direito está descendo”). Uso de óculos desde criança, tratamento oclusivo e sem cirurgia. História patológica pregressa: prematuridade. Exame oftalmológico: acuidade visual no olho direito (OD): -17,50 esf conta dedos a 2 metros e no olho esquerdo (OE): -2,50 =-0,50 a 30º 1,0. Biomicroscopia de ambos os olhos (AO) normal. Pressão intraocular: 12 mmHg AO (18:30h). Exame da motilidade ocular: Krimsky: exotropia de 35 dioptrias prismáticas (DP) e hipotropia do OD de 12 DP. Apresentava excesso de elevação em adução do OD (+1,0), limitação de elevação do OD (-2,0) e excesso de abaixamento do OD (+1,5) (Figura 1). As versões em excesso foram graduadas em uma escala subjetiva de 0 a +4, com 0 indicando nenhum excesso de movimentação e +4 indicando uma máxima movimentação do olho, além da linha média horizontal ou vertical. A limitação de versão foi graduada similarmente na escala de 0 a -4. Oftalmoscopia: halo de atrofia coriorretiniana peridiscal no OD e aumento da escavação no OE. Na mácula, áreas de atrofia do epitélio pigmentar da retina (EPR) no OD. Rarefação difusa do EPR em AO; área de hiperplasia de EPR no OD; buraco retiniano nasal superior no OD; degeneração periférica retiniana do tipo lattice, superior e inferior em AO, extensas no OD; “branco sem pressão” nasal e temporal no OD. Realizada fotocoagulação nas lesões predisponentes à rotura.
Submetida à ressonância magnética (RNM) de órbitas e identificado aumento dos bulbos oculares, notando-se maior aumento do diâmetro ântero-posterior do OD. Os músculos extrínsecos oculares (MEO) apresentavam-se com sinal e dimensões normais (Figuras 2, 3 e 4). Também foi submetida à ultrassonografia ocular, demonstrando comprimento axial aumentado e assimétrico, sendo o OD (32 mm) maior que o OE (26 mm) (Figura 5), além de aumento e abaulamento da curvatura posterior do OD, sendo sugestivo de estafiloma do polo posterior.
Realizada cirurgia para correção do estrabismo: retrocesso do mRL de 8 mm e ressecção do músculo reto medial (mRM) de 5,5 mm no OD e retrocesso do músculo oblíquo inferior (mOI) no OE.
No pós-operatório, apresentava: Krimsky: ortotropia, limitação de elevação em adução (-1,0) e limitação de elevação (-2,0) do OE devido ao recuo realizado em mOI do OE (Figura 6).
DISCUSSÃO
O estrabismo na alta miopia é um estrabismo adquirido, nos olhos com aumento do diâmetro ântero-posterior, devido ao alto grau de miopia, geralmente superior a 25 dioptrias esféricas5. Caracteriza-se pela restrição da abdução e da elevação, com esotropia e hipotropia do olho acometido6. Nos casos avançados, o olho comprometido fica extremamente fixo na posição de convergência e em hipotropia e o movimento em qualquer outra direção fica ausente. Essa condição extrema foi chamada de estrabismo convergente fixo ou miópico fixo ou HES. Pode ser uni ou bilateral7. A HES foi descrita pela primeira vez, em 1966, por Bagshaw, ao apresentar relato de caso de dois pacientes com desvios verticais e horizontais, e alta miopia, denominando então de Heavy Eye Phenomenon8.
O estrabismo associado com alta miopia nem sempre adquire a forma de desvio fixo. Em alguns casos, ocorre esotropia de pequeno ângulo com discreta restrição da abdução, podendo o olho se mover para além da linha média. Nem sempre ocorre desvio convergente, sendo a exotropia associada à hipotropia uma manifestação rara, algumas poucas vezes relatada2,9-13.
Teorias foram defendidas a respeito da etiologia da esotropia-hipotropia adquirida na alta miopia. Esse desvio progressivo foi descrito desde como devido à miosite e consequente fibrose do mRL, como também por compressão do mRL pelas paredes orbitárias por causa do crescimento do olho7.
A principal teoria é derivada de Yokoyama e cols, que postularam que o alongamento miópico do olho leva ao prolapso do quadrante posterior súpero-temporal para fora do cone muscular, entre os mRS e mRL. Dessa forma, o mRS é deslocado medialmente e o mRL, inferiormente. O deslocamento inferior da polia do mRL aumenta a infradução, e o deslocamento medial da polia do mRS aumenta a força de adução, levando à supradução e abdução limitadas, respectivamente4,5.
Rutar e Demer sugeriram que a degeneração da banda de ligamento entre os mRL e mRS, com o avançar da idade, pode contribuir para o deslocamento inferior do mRL. Possivelmente, mudanças similares ou a instabilidade nas polias dos MEO devido ao volume desproporcional entre a órbita e o bulbo ocular, além da consequente fragilidade do tecido orbitário podem contribuir para a patogênese desse estrabismo3.
Essa teoria vem sendo reforçada através dos exames de imagem, como a RNM, que permitem estudo da musculatura extrínseca ocular. Diversos estudos elucidaram que esse estrabismo é consequência da alteração do trajeto dos MEO associada ao alongamento do olho na miopia axial extrema2,7,14.
Monga e cols. relataram a maior série de exotropia e hipotropia em quinze pacientes com estrabismo progressivo e alta miopia, com ambliopia anisometrópica. Hipotropia maior que 5 DP foi percebida em 80% dos casos. A média de comprimento axial do olho desviado era de 29,43 + 1,51 mm, o que é menor que o encontrado no complexo esotropia-hipotropia. A média do desvio divergente foi de 37 + 9 DP e da hipotropia foi de 13 + 6 DP. Deficiência na elevação foi notada em seis pacientes (40%). Entretanto, nos exames de imagem, os posicionamentos dos MEO eram normais2. Assim, tem-se dados compatíveis com o caso clínico apresentado, reforçando os estudos sobre o assunto.
Ahmed e cols. constataram um padrão de miopia alta unilateral com exotropia de ângulo moderado, com limitação da elevação e ambliopia profunda do olho desviado. Identificaram no per operatório deslocamento inferior do mRL, tal como acontece na HES. Inicialmente, foi suposto um deslocamento temporal do mRS, ao invés do deslocamento nasal descrito na HES. Entretanto, a exploração do mRS em todas as cirurgias realizadas por eles não revelou tal deslocamento, compatível com a RNM previamente à cirurgia10.
A etiologia da exotropia-hipotropia adquirida na alta miopia não está claramente definida. Alguns propuseram o termo Exotropic Heavy Eye para descrever esse padrão de desvio nos pacientes míopes, mas ressaltaram que tal termo não deve sugerir a mesma patogênese que na HES. Uma das explicações para o exotropic heavy eye é que um olho amblíope tem tendência a entrar em estado de hipotropia e exotropia, que é o estado de repouso para o olho. A hipotropia e a exotropia de longa data resultariam em alguma restrição tanto na elevação quanto na adução10.
Diversas cirurgias foram propostas para a abordagem da HES. A escolha da técnica baseia-se em grande parte na preferência e na experiência do cirurgião11. A tradicional técnica de recuo-ressecção é associada à recorrência da esotropia pois não aborda a correção do trajeto muscular alterado15.
Em 2002, Yamada e colaboradores propuseram uma das primeiras técnicas que abordaria o trajeto muscular alterado na HES. A técnica de Yamada envolve hemitransposição do mRS e do mRL, frequentemente combinada com recuo do mRM. Os mRS e mRL são parcialmente divididos ao meio por, aproximadamente, 15 mm de sua origem. A metade temporal do mRS e a metade superior do mRL são fixadas à esclera 7 mm posterior ao limbo16.
Larsen e Gole, em 2004, utilizaram o procedimento de Jensen de forma parcial em um caso de estrabismo fixo miópico. O procedimento realizado dividiu ao meio os mRS e mRL, a partir da inserção ao equador, e sutura não absorvível a 12 a 15 mm do limbo uniu a metade lateral do mRS e a metade superior do mRL17.
Yamaguchi e cols. em 2010, propuseram a técnica de Yokoyama que consiste em criar união e aproximação entre os ventres musculares do mRS e o mRL e realização de sutura, não absorvível de poliéster 5-0, 15 mm atrás das inserções musculares. Essa aproximação resulta em um “sling” que suporta o olho alongado, empurrando-o de volta para o cone muscular. Pode ser associada ao recuo do mRM em casos que a esotropia não for completamente corrigida ou houver contratura do mRM6. Revisão realizada por Su e cols. determinou que a técnica de Yokoyama associada ao recuo do mRM é mais eficaz em pacientes com esotropia entre 12 e 85 DP18.
A miopexia com alça de silicone é outra técnica utilizada para o tratamento da HES. Cria-se um túnel escleral a 14-16 mm do limbo entre os mRS e mRL e então uma alça de silicone é passada sob o mRL, em seguida através do túnel escleral e então sob o mRS, unindo-se assim os ventres desses músculos19.
Recentemente, em 2022, Mendonça e cols propuseram nova técnica para o tratamento da HES, denominada Interlacing. Consiste em desinserir e entrelaçar a metade superior do mRL ao mRS dividido em sua inserção e reinserir essa alça do mRL à sua inserção original20.
Em contraste ao complexo esotropia-hipotropia, a abordagem cirúrgica para o complexo exotropia-hipotropia não é descrita com um procedimento específico e simples. Monga e cols., em amplo estudo de séries, realizaram retrocesso/ressecção com elevação das inserções musculares em todos os pacientes. Dois pacientes tiveram que ser submetidos a retrocesso adicional do músculo reto inferior (mRI). Um paciente com anisotropia em “A” foi submetido a tenotomia do músculo oblíquo superior (mOS). Outro necessitou de ser submetido à miectomia do mOI. Em um paciente que foi submetido a retrocesso do mRI, observou-se, no per operatório, deslocamento temporal desse músculo. Miopexia unindo o mRM e o mRS foi realizada em um paciente como reoperação para exotropia residual de 16 DP e hipotropia de 22 DP com resultado satisfatório2,21.
Em 2019, Ganesh e cols. elaboraram uma série de três casos composta por pacientes apresentando exotropia-hipotropia e alta miopia. No per operatório, perceberam deflexão inferior no trajeto do mRM a partir de sua inserção e deslocamento lateral da inserção do mRS, por quase uma largura do tendão. Não encontraram estafiloma entre o mRM e o mRS, embora afinamento da esclera pôde ser percebido. Hipotetizaram que a limitação de elevação do mRS, percebida no pré-operatório, era devido ao trajeto e inserção alterados, o que provocava efeito mais abdutor que elevador, explicando assim a exotropia e hipotropia. Realizaram retrocesso e ressecção dos retos horizontais associados à miopexia nasal em alça entre mRS e mRM a 12 mm de suas respectivas inserções, com poliéster 5-0 não absorvível. Não executaram sutura episcleral, dado o afinamento escleral nesses locais. Obtiveram resultados satisfatórios no pós-operatório, com melhora da elevação em abdução e do desvio ocular em todos os casos22.
No caso relatado, a paciente não apresentava alterações no trajeto dos MEO na RNM e nem no per operatório. Apresentava alta miopia unilateral, exotropia de médio ângulo (35 DP) e hipotropia de 12 DP, similares à média de desvio encontrada por Monga e colaboradores. A cirurgia realizada foi retrocesso do mRL de 8 mm e ressecção do mRM de 5,5 mm no OD, por ser o olho acometido pela alta miopia, o não fixador e o amblíope. Além disso, optamos por realizar o retrocesso do mOI no OE, por ser uma técnica reversível e graduável, que levaria a uma limitação de elevação do OE e, assim, corrigiria o desvio vertical. O resultado no pós-operatório foi considerado satisfatório, principalmente pela paciente, que está sendo acompanhada por sete anos, desde a intervenção cirúrgica, mantendo ortotropia.
Grande parte dos pacientes com complexo de exotropia-hipotropia tem miopia alta unilateral, ambliopia densa e exotropia de ângulo moderado, enquanto a maioria dos casos relatados de HES possuem miopia alta bilateral e esotropia de grande ângulo.2 O complexo de exotropia-hipotropia na miopia alta é uma apresentação rara, cuja patogênese não está clara e cujo manejo cirúrgico não é padronizado, demandando estudos para melhor entendimento.
REFERÊNCIAS
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INFORMAÇÃO DOS AUTORES |
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» Danielle Ribeiro Brega Weiss https://orcid.org/0000-0002-1950-7149 http://lattes.cnpq.br/5107661603504202 |
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» Lara de Cássia Dutra Teixeira https://orcid.org/0009-0007-0664-3460 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do |
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» Marta Halfeld Ferrari Alves Lacordia https://orcid.org/0000-0003-4296-4871 http://lattes.cnpq.br/4777310256357609 |
Financiamento: Declaram não haver.
Aprovado pelo seguinte comité de ética em pesquisa: Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF (CAAE: 49475321.3.0000.5133).
Conflitos de Interesse: Declaram não haver.
Recebido em:
11 de Setembro de 2023.
Aceito em:
12 de Fevereiro de 2024.