Artigo

Acesso aberto Revisado por pares

1348

Visualizações

 


Casos Clínicos Discutidos

Evitando perfluorocarbono líquido sub-retiniano: relato de caso e mini revisão da literatura

Avoiding sub-retinal perfluorocarbon liquid: case report and mini literature review

Lais Bomediano de Souza1; Larissa Ferreira Vay1; Osias Francisco de Souza2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2021.0027

RESUMO

O descolamento regmatogênico da retina (DRR) é a forma mais comum de descolamento de retina. A melhor abordagem para corrigir o descolamento regmatogênico de retina inclui vitrectomia via pars plana e, uma de suas ferramentas mais importantes é o uso de perfluorocarbono líquido (PFCL). No entanto, o perfluorocarbono líquido não é totalmente seguro. A retenção inadvertida do perfluorocarbono líquido sub-retiniano deve ser evitada devido ao seu potencial efeito colateral na estrutura macular e na função porque o perfluorocarbono líquido age, de forma tóxica, diretamente nas células ARPE-19. Relatamos um caso de perfluorocarbono líquido sub-retiniano, consequência de um incidente cirúrgico. Durante a injeção de perfluorocarbono líquido, o jato inicial causou uma microperfuração na retina e o perfluorocarbono líquido migrou para o espaço sub-retiniano. No 30º dia do período pós-operatório, a angiografia com fluoresceína e a tomografia de coerência óptica mostraram atrofia retiniana na mesma área. Em conclusão, o perfluorocarbono líquido deve ser usado com cautela. Durante a cirurgia, a infusão deve ser desligada e à medida que a hipotonia do globo é obtida, a injeção deve ser feita lentamente e o jato direcionado para longe da mácula. Todo o perfluorocarbono líquido residual deve ser removido e toda a cavidade vítrea deve ser verificada.

Palavras-chave: Vitrectomia via pars plana; Perfluorocarbono líquido; Perfluorocarbono líquido sub-retiniano.

ABSTRACT

Rhegmatogenous retinal detachment is the most common form of retinal detachments. The best approach to repair rhegmatogenous retinal detachment includes pars plana vitrectomy and one of its most important tools is the use of perfluorocarbon liquid. However, perfluorocarbon liquid is not totally safe. Inadvertent subretinal perfluorocarbon liquid retention should be avoided due to its potential side effect on the macular structure and function: perfluorocarbon liquid is directly toxic to ARPE-19 cells. We report a case of sub retinal perfluorocarbon liquid consequence of a surgical incident. During the injection of perfluorocarbon liquid, the initial jet stream caused a micro perforation of the retina and a volume of the material migrated to the sub retinal space. By the 30th post-operative day, fluorescein angiography and optical coherence tomography showed retinal atrophy in the same area. In conclusion, perfluorocarbon liquid must be used with caution: during the surgery infusion most be turned off and as softness of the globe is obtained, the injection should be done slowly, and the jet stream directed away from the macula. All residual perfluorocarbon liquid should be removed, and the entire vitreous cavity should be checked.

Keywords: Pars plana vitrectomy; Perfluorocarbon liquid; PFCL; Subretinal PFCL.

INTRODUÇÃO

Os descolamentos regmatogênicos de retina (DRR) são a forma mais comum de descolamento de retina (DR). Apesar da excelente habilidade dos profissionais e da tecnologia crescente, até 10% dos casos requerem intervenções adicionais para, em última análise, reparar descolamentos recorrentes causados principalmente por vitreorretinopatia proliferativa (PVR)1.

A cada ano, novas tecnologias são introduzidas e uma das mais importantes é a aplicação de perfluorocarbono líquido (PFCL) em DRR, descolamento de retina tracional (retinopatia diabética), descolamento de retina por rotura gigante com PVR grave, deslocamento posterior do cristalino e de lentes intraoculares e corpos estranhos intraoculares. O início da aplicação de PFCL se deu em 1987, após estudos in vivo e in vitro de segurança e eficiência em aplicações intraoperatórias, Chang et al. utilizaram PFCL durante vitrectomias em pacientes com descolamento de retina com PVRs graves2.

O uso de PFCL auxilia na cirurgia de reparo da retina porque a densidade do PFCL, em uso, é cerca de duas vezes maior que a da solução de perfusão, quando injetada na cavidade vítrea durante a vitrectomia, gerando uma força descendente contra a interface. Após o descolamento, o PFCL injetado realoca e imobiliza a retina posteriormente. Enquanto o PFCL é gradualmente injetado na cavidade vítrea, o líquido sub-retiniano é empurrado anteriormente e, portanto, para a cavidade vítrea através de roturas da retina, o que muitas vezes permite evitar a retinotomia posterior para drenagem do líquido. Em alguns casos, esse processo pode fornecer informações sobre a localização de roturas periféricas não identificadas se a drenagem do líquido sub-retiniano for observada por meio de roturas diferentes das primeiras identificadas anteriormente3.

No entanto, o PFCL não é completamente inócuo. Uma complicação proeminente da aplicação intraoperatória de PFCL é a retenção inadvertida de PFCL sub-retiniano. O PFCL subfoveal, mesmo em pequenas quantidades, recebe muita atenção devido ao seu potencial efeito colateral na estrutura macular e na função4. Isso está associado a resultados visuais ruins devido aos seus potenciais efeitos tóxicos diretamente no epitélio pigmentar da retina (EPR) e nas células fotorreceptoras5,6. Muitos estudos concordam que o PFCL líquido sub-retiniano deve ser removido6-8.

O perfluorocarbono líquido age de forma tóxica diretamente nas células ARPE-19 quando a exposição excede sete dias. Por outro lado, parece que as células ganglionares da retina (CGRs) sofrem danos inerentes ao tempo ao invés de efeitos mecânicos, além dos efeitos tóxicos do PFCL9.

Apresentamos um caso incomum de PFCL sub-retiniano, em que o perfluorocarbono ultrapassa o espaço sub-retiniano devido a um incidente cirúrgico.

 

RELATO DE CASO

Um homem de 36 anos com diminuição da acuidade visual (20/25 – Tabela de Snellen) e um defeito no campo visual inferior do olho esquerdo foi encaminhado para o nosso hospital. A fundoscopia e a ultrassonografia B-scan mostraram DRR superior com mácula-on (colada) com grande rotura retiniana superior, menor que 90º de tamanho. A vitrectomia via pars plana (calibre 25) foi realizada com troca de fluido-ar, fotocoagulação endolaser ao redor da rotura da retina e tamponamento gasoso (C3F8, 12%). O paciente foi instruído a manter a posição supina por

3 dias consecutivos no período pós-operatório e mais 27 dias evitando o decúbito dorsal horizontal.

No entanto, durante a injeção de PFCL para posicionar a retina, o jato inicial causou uma microperfuração retiniana e um volume de PFCL ultrapassou a retina e formou uma bolha localizada logo abaixo da arcada inferior (Figura 1). A decisão foi remover o PFCL e usando uma cânula de calibre 38 e aspiração ativa, a bolha PFCL foi removida e a cirurgia concluída, conforme descrito acima (Figuras 2 A, B).

 


Figura 1. Uma bolha de PFCL sub-retiniano na arcada inferior, área esbranquiçada da retina.

 

 


Figura 2. (A) Usando uma cânula de calibre 38 e aspiração ativa na bolha de PFCL. (B) O PFCL foi removido e a área esbranquiçada da retina fica menos branca.

 

Em trinta dias, uma angiografia com fluoresceína (AF) e uma tomografia de coerência óptica (OCT) mostraram uma área de atrofia da retina e do EPR (Epitélio Pigmentar da Retina) correspondente à área da bolha PFCL sub-retiniana do incidente (Figuras 3 e 4).

 


Figura 3. Angiografia com fluoresceína mostrando uma área atrófica da retina correspondente ao espaço onde o PFCL penetrou.

 

 


Figura 4. TCO mostrando uma retina atrófica, camadas interna e externa, e uma área de EPR correspondente ao espaço onde o PFCL penetrou.

 

DISCUSSÃO

O presente relato é sobre um paciente que teve uma extensa rotura na retina com manejo semelhante a uma rotura retiniana gigante (RRG). A RRG é uma rotura retiniana neurossensorial com a espessura completa da retina que se estende circunferencialmente ao redor da retina por três ou mais horas de relógio, na presença de um vítreo descolado posteriormente. Sua incidência em grandes estudos de base populacional foi estimada em 1,5% de descolamentos regmatogênicos de retina, com preponderância masculina significativa, bilateralidade em 12,8% dos casos. A maioria das RRG é idiopática, mas há outras causas como traumas, vitreorretinopatias hereditárias e miopia alta com frequências decrescentes. Atualmente, a grande maioria das RRGs é tratada com vitrectomia via pars plana. As taxas de readerência primária e final da retina são alcançadas em 88% e 95% dos pacientes, respectivamente. Mesmo quando a retina permanece aderida, a recuperação visual pode ser limitada10. A crescente eficiência na readerência da retina deve-se a inúmeros fatores, incluindo melhores tecnologias e o crescimento de técnicas cirúrgicas. O uso do PFCL tem um papel fundamental nos casos de descolamentos causados por roturas gigantes.

Em casos de maior complexidade, o uso do PFCL sempre desempenha um papel importante, entretanto, as possíveis complicações relacionadas ao uso do PFCL devem ser consideradas e evitadas em todas as etapas do procedimento. O perfluorocarbono sob a retina pode ser tóxico e causar danos permanentes ao EPR.

Relatos sobre a toxicidade do PFCL mostram efeitos deletérios às células ARPE-19, uma linhagem celular de EPR humano que surge espontaneamente após sete dias de exposição, e também os danos gerados pelo PFCL através da força mecânica transmitida às células ganglionares da retina9-11. Além disso, a inflamação ocular relacionada ao PFCL também é observada em condições clínicas, especialmente em casos de retenção sub-retiniana12. No presente relatório, o PFCL foi imediatamente removido durante a cirurgia, no entanto, talvez uma quantidade minimamente residual possa explicar a retina externa e o dano ao EPR observados na OCT e na AF trinta dias depois.

Para prevenir e evitar tais acidentes, algumas precauções devem ser tomadas: a infusão deve ser desligada antecipadamente e, à medida que a hipotonia do globo é obtida, a injeção deve ser feita lentamente com uma cânula de duplo furo ou com mecanismo semelhante, para evitar traumas retinianos e evitar elevações da PIO (Pressão Intraocular). O PFCL deve ser injetado como uma única bolha para evitar bolhas semelhantes a ovos de peixe e dispersão para a retina posterior, uma complicação mais comum em técnicas de cirurgias de pequeno calibre. Além disso, o jato deve ser direcionado para longe da mácula e do pólo posterior assim como a fibra de luz que pode ser posicionado na frente do jato para minimizar sua força inicial. Como última precaução, ao final da cirurgia, toda a cavidade vítrea deve ser verificada e todas as bolhas e microbolhas de PFCL devem ser removidas.

O PFCL deve ser usado com cautela durante a técnica de injeção e deve ser cuidadosa e completamente removido até o final do procedimento para evitar danos graves à retina e ao EPR.

 

REFERÊNCIAS

1. Adelman RA, Parnes AJ, Ducournau D; European Vitreo-Retinal Society (EVRS) Retinal Detachment Study Group. Strategy for the management of uncomplicated retinal detachments: the European vitreo-retinal society retinal detachment study report 1. Ophthalmology. 2013;120(9):1804-8.

2. Chang S, Ozmert E, Zimmerman NJ. Intraoperative perfluorocarbon liquids in the management of proliferative vitreoretinopathy. Am J Ophthalmol. 1988;106(6):668-74.

3. Liu W, Gao M, Liang X. Management of Subfoveal Perfluorocarbon Liquid: A Review. Ophthalmologica. 2018;240(1):1-7.

4. Yu Q, Liu K, Su L, Xia X, Xu X. Perfluorocarbon liquid: its application in vitreoretinal surgery and related ocular inflammation. Biomed Res Int. 2014;2014:250323.

5. Berglin L, Ren J, Algvere PV. Retinal detachment and degeneration in response to subretinal perfluorodecalin in rabbit eyes. Graefes Arch Clin Exp Ophthalmol.1993;231(4):233-7.

6. Lee GA, Finnegan SJ, Bourke RD. Subretinal perfluorodecalin toxicity. Aust N Z J Ophthalmol. 1998;26(1):57-60.

7. Lai JC, Postel EA, McCuen BW 2nd. Recovery of visual function after removal of chronic subfoveal perfluorocarbon liquid. Retina. 2003;23(6):868-70.

8. Lesnoni G, Rossi T, Gelso A. Subfoveal liquid perfluorocarbon. Retina. 2004;24(1):172-6.

9. Inoue M, Iriyama A, Kadonosono K, Tamaki Y, Yanagi Y. Effects of perfluorocarbon liquids and silicone oil on human retinal pigment epithelial cells and retinal ganglion cells. Retina. 2009;29(5):677-81.

10. Shunmugam M, Ang GS, Lois N. Giant retinal tears. Surv Ophthalmol. 2014;59(2):192-216.

11. Osterholz J, Winter M, Winkler J, Pfister G, Kovacs G, Dresp J, et al. [Retinal damage by perfluorocarbon liquids - a question of specific gravity? Intraocular pressure peaks and shearing forces]. Klin Monbl Augenheilkd. 2009;226(1):38-47. German.

12. Lesnoni G, Rossi T, Gelso A. Subfoveal liquid perfluorocarbon. Retina. 2004;24(1):172-6.

 

INFORMAÇÃO DOS AUTORES

Financiamento: Declaram não haver

Conflitos de Interesse: Declaram não haver

Recebido em: 24 de Junho de 2021.
Aceito em: 16 de Julho de 2021.


© 2024 Todos os Direitos Reservados