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Relato de Caso

Lesão retrobulbar secundária à neurocisticercose: relato de caso

Retrobulbar lesion secondary to neurocysticercosis: case report Antonio Ferreira

Antonio Ferreira de Mendonça Neto1; Marcela Alves Morais Vanazzi2; Gustavo Pascoal Azevedo1,2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2020.0006

RESUMO

Cisticercose é uma doença endêmica no homem ocasionada por alimentos contaminados de ovos de Taenia, o parasita acomete variados órgãos como coração, músculos, cérebro e olhos. Os olhos são o principal alvo em até 46% dos doentes, caracterizado por uma reação inflamatória importante, evoluindo com baixa de visão. Relataremos um caso de lesão retrobulbar secundária à Neurocisticercose (NCC). Paciente de 39 anos, queixando de baixa da acuidade visual no olho direito (OD) há 10 dias. O exame mostrou: lesões retinianas, tomografia computadorizada de crânio (TCC) com presença de cistos calcificados altamente sugestivos de neurocisticercose no córtex cerebral e ressonância nuclear magnética das órbitas (RNMO) com focos hipointensos e realce do contraste na projeção da cabeça do nervo óptico sugerindo cisticercose retrobulbar.

Palavras-chave: Cisticercose; Neurocisticercose; Neurite retrobulbar.

ABSTRACT

Cysticercosis is an endemic disease in humans, caused by foods contaminated with Taenia eggs. The parasite affects various organs, such as the heart, muscles, brain, and eyes. Eyes are the primary target in up to 46% of patients. Cysticercosis in the eye is characterized by remarkable inflammatory reaction, evolving with loss of visual acuity. Here we report the case of a 39-year-old patient with retrobulbar lesion secondary to neurocysticercosis who complained of low visual acuity in the right eye for 10 days. The examination showed retinal lesions; computed tomography of the skull showed the presence of calcified cysts highly suggestive of neurocysticercosis in the cerebral cortex; and magnetic resonance imaging of the orbits showed hypointense foci and contrast enhancement in the projection of the optic nerve head, suggesting retrobulbar cysticercosis.

Keywords: Cysticercosis; Neurocysticercosis; Retrobulbar neuritis.

INTRODUÇÃO

A cisticercose é uma doença ocasionada pela larva da Taenia solium. Normalmente o homem é o hospedeiro definitivo da tênia, mas em alguns casos, o ser humano se torna hospedeiro intermediário da larva Cysticercus celulosae, o que é chamado de cisticercose humana. Esta endemia é causada por água e alimentos infectados por ovos, ou até por autoinfecção1. Sendo uma doença comum em países em desenvolvimento, mostra associação entre diversos aspectos sociais, tais como salubridade individual, de grupo ou infra-estrutura de saneamento público2.

Para diagnóstico da doença no homem é importante a descrição da topografia do cisticerco, que pode ser no olho, sistema nervoso periférico ou sistema nervoso central (SNC)1. O acometimento do olho ocorre em cerca de 13-46% dos doentes3 e, além disso, pode ser intra ou extra-ocular4. Epidemiologicamente, as crianças e adultos jovens são os grupos mais afetados5.

O cisticerco libera uma substância responsável por produzir uma reação inflamatória, visível através de edema das pálpebras e celulite orbital. A glândula lacrimal, ossos da órbita e subperiósteo são pouco acometidos. O comprometimento do nervo óptico geralmente é evidenciado como uma neurite óptica ou intumescência de disco, ocasionando baixa da acuidade visual6. Apresentamos neste artigo, um raro caso sugestivo de envolvimento retrobulbar secundário à NCC.

 

RELATO DE CASO

Paciente masculino, 39 anos, natural e procedente de Porto Velho-RO, queixando de baixa da acuidade visual no olho direito (OD) há 10 dias. Ao exame oftalmológico, apresentou melhor acuidade visual (AV) 20/400 e 20/20. Motilidade ocular, biomicroscopia e tonometria de aplanação dentro dos padrões da normalidade. Fundoscopia do OD mostrando edema de papila, vasculite peripapilar, estrela macular e lesões temporais de coriorretinite em diversos estágios de evolução (Figura 1). Na ocasião, apresentou TCC com presença de cistos calcificados altamente sugestivos de neurocisticercose no córtex cerebral. A RNMO evidenciou focos hipointensos com realce do contraste na projeção da cabeça do nervo óptico e ao longo da gordura extraconal - cisto - no lado direito (Figura 2). Citologia do líquido cefalorraquidiano (LCR) com aumento da contagem de leucócitos. Apresentou sorologias (ELISA) sérica reagente para cisticercose e LCR não reagente. Sorologia para Bartonelose (ELISA) sérica negativa. Sugerido corticoterapia com prednisona 1mg/kg/dia. Após 15 dias de tratamento, apresentou melhora da AV do OD para 20/200, redução do edema de papila, melhora do quadro macular e das lesões de coriorretinite em cicatrização (Figura 3 e 4).

 


Figura 1. Retinografia de olho direito (OD) pré-tratamento.

 

 


Figura 2. Ressonância nuclear magnética de órbitas (RNMO) prétratamento.

 

 


Figura 3. Retinografia de olho direito (OD) pós-tratamento.

 

 


Figura 4. Ressonância nuclear magnética de órbitas (RNMO) pós-tratamento.

DISCUSSÃO

O acometimento do cisticerco (do grego kustis, bexiga e kerkos, cauda) no SNC do ser humano foi descrito pela primeira vez em 1588 por Rümler que isolou a larva na meninge de um doente com epilepsia. Em 1650, Panarolus encontrou larvas no corpo caloso de outro doente com epilepsia. Laennec sugeriu a designação de Cysticercus cellulosae, devido à predileção do cisticerco pelo tecido conjuntivo humano.

Apenas no ano de 1853, van Benedem descreveu a ligação entre os vermes do intestino humano e os cisticercos parasitas, tese corroborada pelos trabalhos de Küchenmeister e Heubner, em 1855, e Leuckart, em 1856, cujos artigos definiram permanentemente a proposição que o cisticerco é causador da ladraria suína e cisticercose no ser humano7.

Os artigos mais antigos sobre cisticercose acometendo olhos são do século XIX, contemporâneos ao início do uso dos aparelhos para fundoscopia. Scholl & Soemmering, no ano de 1829, relataram uma larva de Taenia solium viva na câmara anterior ocular. Em 1838, Baum descreveu um cisticerco na conjuntiva do olho. Von Graefe em 1866, publicou pela primeira vez uma larva viva no vítreo8. A NCC no homem manifesta variados sinais, demonstrando uma diversidade de fatores associados à faixa etária, imunidade, e múltiplos aspectos9.

Neste caso relatado, as imagens da TCC e RNMO produzem evidências altamente sugestivas de infecção. No entanto, alguns sinais são inespecíficos e o diagnóstico diferencial com outras infecções e neoplasias do SNC ainda são difíceis. Atualmente são sugeridos critérios diagnósticos da NCC fundamentados em fatores clínicos, imagens, marcadores sorológicos e aspectos epidemiológicos. Sendo assim, são classificados em quatro classes, embasados no valor de cada aspecto diagnóstico10. Os critérios de Del Brutto são mostrados a seguir.

Critérios absolutos

• Anatomopatológico do SNC com cisticerco

• Cisto (escólice) na TCC ou RNM do crânio

• Observação das larvas sub-retinianas

Critérios maiores

• Lesões fortemente compatíveis na TCC ou RNM do crânio

• Marcadores sorológicos do cisticerco (EITB)

• Melhora de lesões císticas no SNC após tratamento

• Melhora espontânea de minímas lesões unitárias

Critérios menores

• Lesões sugestivas em neuroimagens

• Sinais clínicos compatíveis de NCC

• Sorologia ELISA sérica positiva para cisticerco no LCR

• Cisticercose externamente ao SNC

Critérios epidemiológicos

• Indício de convívio na família com doentes

• Sujeitos provenientes de regiões endêmicas

• Visitas regulares a regiões onde a doença é comum

Interpretação dos critérios de Del Brutto

Diagnóstico definitivo:

⚬ Um critério absoluto ou dois critérios maiores

⚬ Um critério maior, dois menores e um epidemiológico

Diagnóstico provável:

⚬ Um critério maior e dois menores ou um critério maior, um menor e um critério epidemiológico

⚬ Três critérios menores e um epidemiológico

No caso relatado, o paciente apresentou: um critério maior (cistos calcificados sugestivos de neurocisticercose no córtex cerebral), dois menores (Sorologia ELISA sérica positiva e cisticercose fora do SNC) e um epidemiológico (procedente de área endêmica), definindo o diagnóstico de NCC.

Há 25 anos a principal forma de terapêutica é o uso de cisticidas, frequentemente combinados com corticosteroides, procurando a diminuição da quantidade e tamanho dos cistos e granulomas. Contudo, mesmo assim não se conhece um tratamento verdadeiramente eficaz no controle da NCC11.

Quando a larva está viva produz pouca inflamação, no entanto, após a destruição do cisticerco, a resposta imunológica do organismo é muito intensa. A morte da larva ainda no olho, comumente produz muitas substâncias tóxicas e frequentemente leva à lesão irreversível do globo ocular12. As formas de remoção da larva são: laser, diatermia e irradiação. Foi relatado o caso de um doente com cisticerco intra-vítreo, que foi submetido à vitrectomia via pars plana e, no pós-operatório, foi prescrito o uso de corticoide tópico e via oral com redução gradativa, observando melhora da inflamação ocular e recuperação da acuidade visual13.

No caso descrito neste relato, evidenciou-se melhora da inflamação ocular com uso de corticoterapia sistêmica, não sendo possível remoção cirúrgica para estudo anatomopatológico ou tratamento do cisto. Neste caso, existe evidência de envolvimento do nervo óptico pelo parasita da cisticercose, fato incomum na literatura pesquisada.

 

CONCLUSÃO

A cisticercose ocular, embora considerada uma patologia de baixa prevalência, deve ser lembrada nas hipóteses diagnósticas para patologias intra e extraoculares, que se apresentem com sintomatologia de moscas volantes e diminuição da acuidade visual, principalmente na presença de cistos ou vesículas evidenciadas no exame oftalmológico e associada a critérios epidemiológicos.

Frequentemente, a terapêutica com cisticidas an-ti-helmínticos pode ser ainda mais danosa, ocasionado pela importante liberação de substâncias tóxicas após a destruição da larva. Muitas vezes, devido à localização em órgãos nobres opta-se por tratamento com corticosteroides sistêmicos, para controle da inflamação local.

Sendo assim, é necessária a produção de novas pesquisas que investiguem o acometimento retrobulbar pela NCC, uma vez que a cisticercose é endêmica em algumas regiões e pode ocasionar grave redução da acuidade visual. A prioridade deve ser a prevenção e controle dos parasitas com políticas públicas de saneamento básico e conscientização da higiene pessoal, a fim de evitar a transmissão e, consequentemente, novos casos da doença.

 

REFERÊNCIAS

1. Pfuetzenreite MR, Ávila-Pires FD. Epidemiologia da teníase/cisticercose por Taenia solium eTaenia saginata. Ciência Rural. 2000;30(3):541-8.

2. Guimarães RR, Orsini M, Guimarães RR, Catharino MAS, et al. Neurocisticercose: Atualização sobre uma antiga doença. Revista de Neurociência, 2010;18(4):593.

3. Duke-Elders S, Perkins ES. System of ophthalmology. Inflammations of the uveal tract: uveitis. Mosby.1966;3(9):478-87.

4. Santos R, Chavarria M, Aguirre AE. Failure of medical treatment in two cases of intraocular cysticercosis. Am J Ophthalmol, 1984; 97(2):249-50.

5. Malik SR, Gupta AK, Choudhry S. Ocular cysticercosis. Am J Ophthalmol, 1968;66(6):1168-71.

6. Demirci H; Singh AD. Essentials in Ophthalmology: Orbital inflammatory diseases and their differential diagnosis. Springer. 2015.

7. Brotto W. Aspectos neurológicos da cisticercose. Arq Neuro- Psiquiatr. 1947;5(3).

8. Garcia EA, Conde CK. Cisticercose intraocular bilateral: relato de um caso. Revista Acta Medica Misericordiae.1998;1(1):1-2.

9. Chavarría A, Roger B, Fragoso G, Tapia G, Fleury A, Dumas M, et al. TH2 profile in asymptomatic Taenia solium human neurocysticercosis. Microbes Infect. 2003;5(12):1109-15.

10. Del Brutto OH, Rajshekhar V, White Jr AC, Tsang VC, Nash TE, Takayanagui OM, et al. Proposed diagnostic criteria for neurocysticercosis. Neurology. 2001;57(2):177-83.

11. García HH, Pretell EJ, Gilman RH, Martínez SM, Moulton LH, Del Brutto OH, et al. A trial of antiparasitic treatment to reduce the rate of seizures due to cerebral cysticercosis. N Engl J Med. 2004;350(3):249-58.

12. Reddy PS, Satyendran OM. Ocular cysticercosis. Am J Ophthal. 1964 Apr;57:664-6.

13. Pantaleão GR, Souza ADSB, Rodrigues EB, Coelho AI. Uso de corticóide sistêmico e intravítreo na inflamação secundária à cisticercose intra-ocular: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2007; 70(6):1006-9.

 

INFORMAÇÃO DOS AUTORES

Financiamento: Declaram não haver.

Instituição responsável pela aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa: Centro de Pesquisa em Medicina Tropical – CEPEM (CAAE: 19484419.4.0000.0011)

Conflitos de Interesse: Declaram não haver.

Recebido em: 10 de Dezembro de 2019.
Aceito em: 17 de Junho de 2020.


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