Artigo

Acesso aberto Revisado por pares

2057

Visualizações

 


Revisão Narrativa de Literatura

Psicoftalmologia, estresse parental e cegueira: uma revisão narrativa de literatura

Psycho-ophthalmology, parental stress and blindness: a narrative literature review

Psicoftalmología, estrés parental y ceguera: una revisión narrativa de la literatura

Julio Cesar Souza-Silva1; Maria Alves Barbosa1; Nara Lúcia Poli Botelho2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2019.0022

RESUMO

O estresse parental elevado pode refletir na queda da qualidade do cuidado da criança cega além de elevar o risco de danos à saúde dos pais. Faz-se necessária uma revisão narrativa de literatura para contextualização histórica e para balizar novas pesquisas relacionadas ao tema. Este estudo é uma revisão narrativa de literatura, está em conformidade com o padrão SANRA e objetiva a contextualização narrativa/histórica em seu background médico oftalmológico. O estresse parental em oftalmologia é um campo de estudos relevante e que necessita de mais investigações principalmente na baixa visão e na cegueira.

Palavras-chave: Estresse Psicológico; Parentalidade; Cegueira.

ABSTRACT

High parental stress may be reflected in a decrease in the quality of the blind child's care, in addition to increasing parents' health risks. A narrative literature review is necessary to put this issue into historical context and to guide new studies on this topic. This study is a narrative literature review that complies with the SANRA standard and aims to put this subject into narrative and historical context with an ophthalmologic medical background. Parental stress in ophthalmology is a relevant field of study that requires further research, particularly in cases of low visual acuity and blindness.

Keywords: Stress, Psychological; Parenting; Blindness.

RESUMEN

El estrés parental elevado puede reflejarse en la disminución de la calidad del cuidado del niño ciego, además de incrementar el riego de injurias a la salud de los padres. Se hace necesario una revisión narrativa de la literatura para la contextualización histórica y asimismo para señalar nuevas investigaciones relacionadas al tema. Este estudio es una revisión narrativa de la literatura y está en conformidad con el estándar SANRA. Tiene por objetivo la contextualización narrativa/histórica en su escenario médico oftalmológico. El estrés parental en oftalmología en un campo de estudios relevante y que necesita más investigaciones, sobretodo acerca de la baja visión y ceguera.

Palabras-clave: Estrés Psicológico; Responsabilidad Parental; Ceguera.

INTRODUÇÃO

"Tão importante quanto conhecer a doença que o homem tem é conhecer o homem que tem a doença" (Sir William Osler)1.

A oftalmologia é uma especialidade médica apaixonante e em constante evolução. O filósofo Soren Kierkegaard (1813-1855) declarou que "é preciso olhar o passado para entender a vida; porém, para viver, é necessário olhar o futuro"2. Portanto há momentos em que apoiar-se em ombros de gigantes e olhar para trás refletindo sobre o trabalho e o legado deixado por grandes profissionais de outras eras contribui para contextualização histórica e evolutiva de um determinado tema. Ajuda, também, na busca de um horizonte mais além, tentando identificar lacunas e estimular mais pesquisas sobre um determinado assunto contribuindo para a área específica em questão. Se não, pelo menos, reaviva conceitos para construção de uma melhor prática oftalmológica.

Algumas doenças oftalmológicas podem cursar com alterações psicológicas importantes na própria pessoa ou em sua família. Como exemplo, pode-se citar a cegueira3, a visão subnormal4, o estrabismo5, o câncer ocular6 e a retinopatia da prematuridade7.

Não figura como objetivo deste trabalho fazer do oftalmologista um especialista em psicologia ou psiquiatria, mas trazer à luz este relevante tema para discussão na oftalmologia, sublinhando a importância de se reconhecer possíveis alterações psicológicas nas pessoas atendidas. Isto pode melhorar a relação médico-paciente, a confiança e a adesão aos tratamentos clínico-cirúrgicos propostos, melhorar a qualidade de vida do paciente, facilitar o referenciamento e melhorar as relações parentais, familiares e sociais.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão narrativa de Literatura8-12 conduzida no período de janeiro a abril de 2019. A busca foi feita utilizando-se como base de dados o PUBMED/MEDLINE, Google Scholar e literatura cinzenta. As palavras-chave utilizadas foram: psycho-ophtalmology, psychology, stress, parent*, ophthal*, blind*, low vision, child*, glaucom* e squint*. Este estudo observa o padrão de qualidade preconizado pelo SANRA – Scale for the Quality Assessment of Narrative Review Articles13. Esta revisão visa responder a seguinte pergunta de pesquisa: quais abordagens, metodologias, resultados têm sido publicados considerando-se a psicologia, cegueira e a visão como tema?

 

A NECESSIDADE DE ABORDAR A PESSOA COMO UM TODO – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A discussão entre a relação mente e corpo tem sido objeto de interesse ao longo da história. Sócrates certa vez declarou: "como você não deve tentar curar os olhos sem cabeça ou cabeça sem corpo, então você não deve tratar o corpo sem alma"14.

Na antiguidade, era comum as doenças mentais serem atribuídas a fenômenos sobrenaturais, aos maus espíritos, havendo possibilidade de se imputar ao doente a prática de tratamentos muitas vezes brutais tais como a trepanação - perfuração do crânio para saída dos maus espíritos15.

A superstição, a magia e o ato de curar se mesclavam, sendo que a figura do sacerdote e do médico se sobrepunham, tendo o ato de curar forte conotação do místico-sobrenatural. Civilizações antigas como a assírio-babilônica (3000 a.C), por exemplo, davam conta de que as doenças oculares eram atribuídas ao Vento Demônio do Sudoeste cujo nome era Pazuzu16.

Hipócrates (460 a 370 a.C) já considerava o ser humano como uma unidade indivisível e deu à medicina uma abordagem mais científica e holística. Sobre tratar o ser humano em sua plenitude, certa vez declarou: "a fim de curar o corpo humano, é necessário ter conhecimento do todo das coisas". Esse todo incluía a saúde mental. Tal era sua preocupação com o aspecto mental das pessoas aos seus cuidados que, baseando-se na teoria dos humores, dedicou tempo em elaborar a primeira classificação nosológica dos transtornos mentais em melancolia, mania e paranóia17.

 

A PREOCUPAÇÃO COM AS ALTERAÇÕES PSICOLÓGICAS NA OFTALMOLOGIA – A NECESSIDADE DE UMA VISÃO HOLÍSTICA

Ernerst Fuchs, médico oftalmologista, professor da Universidade de Viena que no século XIX elaborou o tratado de oftalmologia18, referência por décadas, com ensinamentos que demonstravam conhecimentos extraordinários, foi considerado um médico oftalmologista além de seu tempo.

Fuchs, um dos maiores expoentes da oftalmologia, já se preocupava com esta visão holística que o oftalmologista deve ter no cuidado das pessoas as quais atende:

"A este respeito, devemos lembrar que estamos tratando os pacientes, não os olhos, e, portanto, devemos levar em consideração todos os fatores físicos e mentais que podem afetar sua visão da vida e determinar sua necessidade de correção refrativa ou outra"19.

O cuidado da pessoa como um ser indivisível deve ser objeto de atenção do médico. Nesse contexto, o oftalmologista deve atentar para as condições psicológicas de seus pacientes já que essas podem influenciar a evolução da história natural das doenças oculares, bem como suas relações parentais, familiares e sociais.

 

PSICOFTALMOLOGIA: UMA BREVE CORREÇÃO

Há na literatura atribuição a William H. Bates como originador da psicoftalmologia20. Ele publicou em 1920 em seu livro The Cure of Imperfect Sight by Treatment Without Glasse21 que exercícios oculares associados a "pensamentos positivos" e "pensamentos agradávis" poderiam ser a cura para erros refracionais20. Gardner22, em seu livro Fads and Fallacies in the Name of Science, considerou o trabalho de Bates como "fantástico compêndio de inferências injustificadas e ignorância anatômica". Mas, então, qual seria o verdadeiro foco da psicoftalmologia?

A psicoftalmologia é a interação entre a oftalmologia e a psiquiatria23 e estuda distúrbios psicoafetivos no contexto das doenças oftalmológicas. Este será o conceito norteador considerado na seleção e análise dos artigos nesta revisão narrativa de literatura.

 

A PSICOFTALMOLOGIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Ao se analisar as publicações referentes à psicoftalmologia no início do século XX pode-se propor dois cenários: 1) Doenças psicológicas, neurológicas ou psiquiátricas com repercussão na visão; 2) Doenças oftalmológicas que causariam problemas emocionais.

Doenças psicológicas, neurológicas ou psiquiátricas com repercussão na visão

Small24, em 1919, fez uma revisão de literatura do período de maio de 1918 a junho de 1919 em uma seção do Ophthalmic Year Book dedicada aos centros e tratos visuais, na qual foram tratadas questões neurológicas e neuroftalmológicas. Nessa seção, havia estudos que discutiam associação de distúrbios visuais e mentais. No início do século XX quando não havia explicação científica robusta para alguns fenômenos oculares, era comum atribuir-se, por exclusão, suas causas às alterações psicológicas. Nos artigos relatados por Small24 encontram-se termos (a maioria obsoletos, mas citados aqui com finalidade informativa) como "histeria", "cegueira histérica", "cegueira pós estresse emocional", "ambliopia transitória por concussão pós explosão de bombas", "migrânea oftálmica", "ilusões e alucinações", "ambliopia histérica", "cegueira transitória associada à convulsão histérica" e "tensão ocular". Shastid25 posteriormente denominou "histeropia" o conjunto das manifestações oculares da histeria. Em um panorama geral, tratava-se de sintomas decorrentes de situação de estresse emocional associados a eventos extremos (perdas familiares, guerras) ou decorrentes de doenças sistêmicas/neurológicas com repercussão na visão (lesão de quiasma óptico, tumores hipofisários, migrânea, epilepsia). Dentre os tratamentos sugeridos para as tais "desordens histéricas" pode-se citar o "tratamento por sugestão" ou "ficar em quarto escuro por 3 dias".

Nos exemplos citados a causalidade etiológica se deve a um fator externo que culmina em alteração visual. Um exemplo de classificação utilizada para distúrbios oculares de origem psicogênica foi proposta por Harrington26.

Freud27, em 1910, explicou que o chamado paciente "histérico" está cego como resultado de uma dissociação entre processos conscientes e inconscientes no ato de ver. Sua ideia de que não pode ver é uma bem-fundamentada expressão da sua situação psicoafetiva e não sua causa.

Doenças oftalmológicas na gênese/evolução de problemas emocionais

Na psicoftalmologia, o distúrbio visual figura como elemento central, relacional, originador ou potencializador do distúrbio psicológico/psiquiátrico com repercussão na própria pessoa e nas pessoas com quem se relaciona: na saúde ou no relacionamento parental ou de cuidadores, profissionais que o atendem, no âmbito familiar, comunitário ou social.

Inman28, em 1921, médico oftalmologista e psicanalista, estudando estrabismo não encontrou evidências de estresse mental na criança estrábica e começou a estudar as famílias envolvidas e concluiu haver um padrão de rigidez parental de natureza opressiva. Quando este padrão estava ausente, um dos progenitores estava muito reservado e inacessível.

Edwards19, em 1927, publicou artigo sobre os aspectos psicológicos da refração, contextualizando as diversas alterações psicológicas dos pacientes que o oftalmologista pode encontrar em sua prática diária. Ele estimula os profissionais a não se intimidarem frente tais situações clínicas e cita diretamente dois textos de Ernest Fuchs que reforçam o cuidado holístico que médico oftalmologista deve manter, sublinhando a atenção reforçada no exame físico e atenção entre aspectos oftalmológicos e mentais/comportamentais.

Inman29, 1929, questionou o estresse psicológico como causa das crises de glaucoma agudo (este era o pensamento médico comum à época), deixando margem para que futuras pesquisas pudessem elucidar melhor os mecanismos envolvidos.

Helen Flanders Dunbar, conhecida como a mãe da medicina psicossomática e holística30, em 1946, publicou, em um único volume, pesquisa de 2400 artigos publicados entre 1910-1945 sobre a influência das emoções sobre o corpo humano abrangendo cada especialidade da medicina31. À oftalmologia são dedicadas 15 páginas do capítulo XIII, nas quais cada artigo considera seu contexto ou objetivos ou resultados ou conclusões/características principais em relação às doenças psicossomáticas e à visão. A autora faz considerações gerais sobre aspectos psicossomáticos da oftalmologia, considera que a produção de artigos relacionando as alterações psicológicas e visão é pequena e apresenta artigos que expressam uma possível negligência da oftalmologia em relação ao tema, considerando a especialidade afastada da psicologia e psiquiatria. Pondera que mais óbvio que mudanças anatômicas ou funcionais como resultado da influência psíquica é a influência do olho doente sobre a psique. Os sintomas psicológicos são expressão de conflitos psíquicos na personalidade total, e conclui ser este conflito o foco de atenção.

Shoenberg, 194032, mostrou que, no glaucoma, o estado de ansiedade era semelhante à ansiedade verificada nas variações climáticas, pouca iluminação, dietas mal balanceadas, distúrbios cardiovasculares, doenças febris agudas e aumento súbito da pressão arterial, ou seja, que não há uma variação significativa no estado de ansiedade no glaucoma e outras condições de exposição citadas.

Shoenberg, 194014, também afirma que além do tratamento específico para o glaucoma, o ego do paciente, suas dificuldades e problemas psíquicos devem ser tratados.

Hibbeler, 194733, em seu estudo objetiva verificar se os fatores emocionais desempenham um papel proeminente no tratamento do glaucoma. Seu grupo de estudo restringiu-se a 27 glaucomatosos. O instrumento utilizado foi: Minnesota Multiphasic Personality Inventory, com 566 questões tipo verdadeiro/falso das quais somente as primeiras 366 foram utilizadas. Conclui que os pacientes com glaucoma primário apresentam mais frequentemente distúrbios de personalidade. Até onde se pode constatar, foi a primeira pesquisadora a utilizar um instrumento específico para avaliação de desordens psicológicas e oftalmologia.

Hartmann, 194934, considerou que a intenção não é tornar o oftalmologista um psicólogo ou psiquiatra, mas que durante a anamnese as questões relacionadas à saúde mental sejam lembradas. O psiquiatra e o psicólogo são os profissionais com treinamento adequado para avaliação e manejo dos pacientes com distúrbios psíquicos. Mas o conhecimento de psicologia básica e humanização do atendimento traz completude ao atendimento oftalmológico. Entender os sentimentos do paciente e humanizar o atendimento pode melhorar os resultados cirúrgicos, por exemplo. Vale destacar a importância de se ter uma equipe multidisciplinar nesse sentido, pois os tratamentos se complementam.

O primeiro livro sobre oftalmologia psicossomática foi publicado por Schlaegel35 em 1957. O capítulo 23 é dedicado aos aspectos psicossomáticos da pessoa cega. São abordadas as atitudes em relação ao cego, aspectos históricos de como a sociedade encarava a cegueira, o papel do oftalmologista, a reação do paciente à cegueira, o manejo da pessoa cega recente, sugestões de livros para a pessoa cega. Sobre sugeridos gostaria de destacar dois como sugestão de leitura: 1) The Adjustment of the Blind36, para os oftalmologistas e 2) Our Blind Children37, para os pais.

Dunbar, 195938, acrescentou mais um subitem à classificação feita por Harrington39 sobre as manifestações oculares de desordens psicossomáticas: os distúrbios oculares associados com desordens de personalidade. Ela cita o estudos de Barry e Marshall40, Hallenbeck41, Elonen42, 43 sobre a relação entre distúrbios comportamentais e cegueira infantil, e afirmou que eles acreditavam que muitos se não todos os problemas não eram em função da cegueira, mas dos relacionamentos interpessoais, em particular, o relacionamento com a mãe. A psicopatologia que pode resultar como uma reação à cegueira pode se manifestar em si mesma como um prolongamento da fase depressiva ou da depressão masoquista com auto-recriminação e amargura em relação ao mundo38.

Blank, 195744, comentou que a cegueira congênita nem sempre impacta o ego ou a personalidade da criança, mas se ela ocorre quando as funções de ego já estão desenvolvidas é inevitavelmente traumático porque causa ruptura de padrões de comunicação, motilidade, trabalho (atividades para as crianças), recreação, sentimentos sobre si mesmo (imagem corporal e outros aspectos de autoconsciência).

Blank44 considera que alterações psicológicas pré-existentes ou distúrbios de caráter tornam a mãe mais vulnerável ao estresse. Estabelece ainda que os pais de uma criança cega são ansiosos, deprimidos e perplexos, a menos que recebam ajuda profissional. Sentindo-se diferente, defeituosa e isolada, a mãe não consegue se identificar com mães de filhos com visão normal, recua de sua pena, sente-se relutante em discutir com amigos ou parentes os problemas diários encontrados com a criança cega, fecha-se em si mesma e mantém seu filho longe do 'não-defeituoso'.

 

A PSICOFTALMOLOGIA NO BRASIL

O Brasil tem produzido estudos que foram abordando aspectos psicológicos e alterações visuais.

Mucci, 200245, fez estudo para avaliar a fidelidade ao tratamento clínico de pacientes com glaucoma crônico simples com e sem orientação psicológica e concluiu que a orientação psicológica aumentou a fidelidade ao tratamento clínico do glaucoma e com consequente redução da pressão intraocular.

Botelho, 200346, avaliou os aspectos psicológicos decorrentes da anoftalmia unilateral adquirida, a luta pela recuperação estética com o uso de prótese ocular, assim como os fatores interpessoais envolvidos e a reintegração psicossocial desses pacientes ressaltando a importância da atuação multidisciplinar, e postura de atitude positiva em relação ao paciente para facilitar a vivência da perda.

Moreira, 200747, fez estudo para verificar a qualidade de vida e os estilos de personalidade dos pacientes com ceratocone concluindo haver alterações psicossociais e na qualidade de vida nestes pacientes.

Messa48,49, estudou a qualidade de vida relacionada à visão em crianças com retinopatia da prematuridade (ROP), identificando as implicações psicológicas dos pais/cuidadores em relação à doença ocular de seus filhos. Para o método quantitativo utilizou-se o Questionário de Função Visual Infantil (QVFI) e para o método qualitativo utilizou-se entrevista psicológica orientada por um roteiro prévio e analisados por análise de conteúdo, em 88 participantes (Grupo Estudo=43, Grupo Controle=45), havendo redução estatisticamente significante do Grupo Estudo em relação ao Grupo Controle (GC). O estudo demonstra que a ROP tem efeito negativo na qualidade de vida relacionada à visão.

 

A PSICOFTALMOLOGIA, O ESTRESSE PARENTAL E A CEGUEIRA

Estresse é definido como uma resposta inespecífica do corpo a qualquer demanda feita sobre ele. Esta definição é de Hans Selye, médico endocrinologista que, em 1936, conceituou o termo "stress"50.

O estresse é um conceito popular com múltiplas definições e pode ser definido como um fenômeno inerente às dinâmicas psicológica e social humanas que, de um lado, envolve estímulo ou demanda (fator estressor) e, de outro, resulta em angústia ou tensão na esfera afetiva, associados a possíveis respostas fisiológicas como, por exemplo, aumento dos níveis de norepinefrina e cortisol51,52.

Especificamente, o Estresse Parental (EP) se refere ao conjunto de processos que levam a reações psicológicas e fisiológicas adversas resultantes da tentativa de adaptação às atividades inerentes à parentalidade52.

Estresse parental excessivo pode levar à relação parental disfuncional, doenças físicas e psicológicas, as quais podem culminar em problemas comportamentais e emocionais nos filhos e deterioração nas relações familiares53-55. Vale ressaltar aqui que o estado emocional dos pais é fundamental no desenvolvimento da criança, pois sob estresse estariam menos disponíveis às necessidades de seus filhos.

Além de disfunção na relação familiar e doenças nas crianças, o estresse pode estar na raiz de inúmeras doenças físicas e desordens psicológicas, sendo importante fator de risco à saúde dos cuidadores51.

A perda de visão da criança impacta todos os aspectos do desenvolvimento: físico, social, emocional, cognitivo, educacional, em oportunidades futuras de emprego, independência e integração social com importante impacto social e familiar. Níveis superiores aos níveis médios de estresse têm sido associados à queda na qualidade do tratamento da criança cega53,55-58.

Richard R Abidin em 1976 fez a sua primeira publicação a respeito do Parenting Stress Index (PSI). Em 1980, Abidin & Burke59 publicaram o modelo a ser adotado futuramente pelo PSI. Em 1983, o PSI foi desenvolvido em sua primeira versão em resposta à necessidade de avaliação do estresse parental no sistema pais-filhos. Atualmente, o instrumento encontra-se em sua 4ª versão. Um dos quatro pilares de fundamentação do PSI baseia-se nos trabalhos de Selye. Este é o instrumento mais utilizado para avaliação de estresse parental.

Innocenti, 199260, foi o primeiro a incluir a mensuração do estresse parental em pais de filhos deficientes visuais utilizando-se do PSI. Em seu estudo, dentre 725 crianças com deficiências diversas, foi medido o estresse parental em 38 crianças com deficiência visual. Não houve isolamento específico dos resultados para mensuração do estresse parental na deficiência visual. Esses foram considerados como parte integrante do conjunto de "crianças com deficiência". O estudo sustenta a existência de postura intervencionista por parte das famílias de crianças com deficiências60.

De maneira mais específica, Drews53, em 2003, promoveu estudo no qual foram examinados 41 pré-escolares com catarata congênita, com objetivo de examinar a percepção de estresse parental dos cuidadores dessas crianças. Para maximizar a adesão ao tratamento e resultados visuais, os oftalmologistas podem considerar modalidades de tratamento para essas crianças que minimizarão estresse parental além de rastrear e monitorar o estresse parental entre pais de crianças com catarata congênita, bem como fornecer intervenção psicossocial para reduzir o estresse.

Sakkalou, 201761, publicou estudo transversal com coorte longitudinal cujo objetivo era determinar os padrões de estresse parental, ansiedade e depressão em mães de crianças com profunda ou severa deficiência visual com um ou dois anos de idade. Ela utilizou o Parenting Stress Index Short Form (PSI-SF) 3ª edição, composto de 36 itens e três subescalas. A amostra total foi de 90 participantes com tempo de seguimento de 12 meses. Houve perda de 11 participantes ao decorrer do tempo. Ela concluiu que mães de crianças com 1 ano de idade com deficiência visual têm risco elevado para estresse parental e isto foi um risco psicológico maior para manifestarem ansiedade e depressão.

 

COMENTÁRIOS

Alguns problemas visuais, em especial nos filhos, podem ser psicologicamente impactantes para as crianças e seus pais. Como exemplo, pode se citar a cegueira, o glaucoma congênito, o estrabismo e o câncer ocular infantil. Os estudos apresentados nesta revisão narrativa de literatura apontam para fragilidade e, até mesmo, uma marginalização da temática das relações psicodinâmicas e psicológicas no contexto oftalmológico. Somente há menos de três décadas o estresse parental começou a ser estudado em uma abordagem inicial na oftalmologia. Os poucos estudos apresentados estão em contextos específicos (catarata congênita) ou apresentam fatores limitantes em relação à idade dos filhos (0-2 anos) e o local de coleta (crianças hospitalizadas).

 

CONCLUSÃO

A produção científica sobre estresse parental e cegueira é rara. Entretanto, é necessário maior atenção a este tema. As questões psicodinâmicas têm sido negligenciadas ao longo do tempo na oftalmologia, mas elas podem melhorar a relação médico-paciente e trazer melhores resultados para os tratamentos instituídos, melhora na saúde de seus pais e no cuidado da criança cega.

 

REFERÊNCIAS

1. John M. From Osler to the cone technique. HSR Proc Intensive Care Cardiovasc Anesth. 2013;5(1):57-8. PMID: 23734290; PMCID: PMC3670719.

2. Bohan, Bernadette. The Survivor's Mindset Overcoming Cancer: Kick-start your health with the power of your mind and body. Gill & Macmillan Ltd, 2011.

3. Evans RL. Loneliness, depression, and social activity after determination of legal blindness. Psychol Rep. 1983 Apr;52(2):603-8.

4. Kempen GI, Ballemans J, Ranchor AV, van Rens GH, Zijlstra GR. The impact of low vision on activities of daily living, symptoms of depression, feelings of anxiety and social support in community-living older adults seeking vision rehabilitation services. Qual Life Res. 2012 Oct;21(8):1405-11.

5. Cumurcu T, Cumurcu BE, Ozcan O, Demirel S, Duz C, Porgalı E, et al. Social phobia and other psychiatric problems in children with strabismus. Can J Ophthalmol. 2011;46(3):267-70.

6. Amaro TA, Yazigi L, Erwenne C. Depression and quality of life during treatment of ocular bulb removal in individuals with uveal melanoma. Eur J Cancer Care (Engl). 2010 Jul;19(4):476-81.

7. Duman NS, Gökten ES, Duman R, Duman R, Çevik SG. Evaluation of Depression and Anxiety Levels in Mothers of Babies' Following Due to Premature Retinopathy. Arch Psychiatr Nurs. 2018 Jun;32(3):439-43.

8. Baumeister RF, Leary MR. Writing narrative literature reviews. Rev General Psychology. 1997;1(3):311-20.

9. Green BN, Johnson CD, Adams A. Writing narrative literature reviews for peer-reviewed journals: secrets of the trade. J Chiroprac Med. 2006;5(3):101-17.

10. Cronin P, Ryan F, Coughlan M. Undertaking a literature review: a step-by-step approach. Br J Nurs. 2008 Jan;17(1):38-43.

11. Gasparyan AY, Ayvazyan L, Blackmore H, Kitas GD. Writing a narrative biomedical review: considerations for authors, peer reviewers, and editors. Rheumatol Int. 2011 Nov;31(11):1409-17.

12. Ferrari R. Writing narrative style literature reviews. Medical Writing. 2015;24(4):230-5.

13. Baethge C, Goldbeck-Wood S, Mertens S. SANRA—a scale for the quality assessment of narrative review articles. Res Integr Peer Rev. 2019;4(1):5.

14. Schoenberg MJ. Psychosomatic Interrelations: Their Therapeutic Implications In Glaucoma. Arch Ophthalmol. 1940;23(1):91-103.

15. Foerschner AM. The History of Mental Illness: From" Skull Drills" to" Happy Pills". Inquiries J. 2010;2(9):1-4.

16. Castro MG, Andrade TMR, Muller MC. Conceito mente e corpo através da história. Psicol Estud. 2006;11(1):39-43.

17. Cordás TA. Depressão: da bile negra aos neurotransmissores. Uma introdução histórica. Ver Psiquiatr Clin. 2005;32(6):343-344.

18. Fuchs E. Text-book of Ophthalmology. 2nd ed. New York: D. Appleton and Company; 1899.

19. Edwards JF. Some Thoughts On The Psychology Of Refraction. Cal West Med. 1927 Jan;26(1):53-4.

20. Waring GO. William H. Bates: the originator of astigmatic keratotomy and psycho-ophthalmology. Refract Corneal Surg. 1989 Jan/Feb;5(1):56-7.

21. Bates WH. The cure of imperfect sight by treatment without glasses. New York: Central Fixation Publishing Co.; 1919.

22. Gardner M. Fads and Fallacies in the Name of Science. 2nd ed. New York: Dover Publications; 1957.

23. Rajsekar K, Rajsekar YL, Chaturvedi SK. Psycho Ophthalmology: the interface between psychiatry and ophthalmology. Indian J Psychiatry. 1999 Jul;41(3):186-96.

24. Small CP. Visual Tracts and Centers. Am J Ophthalmol. 1919 1919/10/01/;2(10):185-205.

25. Shastid TH. Hysteropia, or the ocular manifestations of hysteria. Am J Physiol Optics. 1921;2:289.

26. Harrington DO. Psychosomatic interrelationships in ophthalmology. Am J Ophthalmol. 1948 Oct;31(10):1241-51.

27. Freud S. Psychogenic visual disturbance according to psychoanalytical conceptions. Collected Papers. 1910;2:105-12.

28. Inman WS. Emotion and eye symptoms. Br J Med Psychol. 1921;2(1):47-67.

29. Inman WS. Emotion and acute glaucoma. Lancet. 1929;214:1188-9.

30. Kemp H. Helen Flanders Dunbar (1902-1959). The Feminist Psychologist. 2001;28(1):1.

31. Dunbar F. Emotions and bodily changes; a survey of literature on psychosomatic interrelationships 1910-1945. 3rd ed. New York: Columbia University Press; 1935.

32. Schoenberg MJ. Role of states of anxiety in the pathogenesis of primary glaucoma. Arch Ophthalmol. 1940;23(1):76-90.

33. Hibbeler HL. Personality patterns of white adults with primary glaucoma. Am J Ophthalmol. 1947 Feb;30(2):181-6.

34. Hartmann E. Psychosomatic phenomena in ophthalmology. Br J Ophthalmol. 1949 Aug;33(8):461-76.

35. Schlaegel TF, Millard H. Psychosomatic ophthalmology. Philadelphia, USA: Lippincott Williams & Wilkins; 1957.

36. Chevigny H, Braverman S. The adjustment of the blind. New Haven, CT, USA: Yale University Press; 1950.

37. Lowenfeld B. Our Blind Children, Growing and Learning with Them. Springfield, Illinois: Charles C. Thomas; 1956.

38. Dunbar HF. Psychiatry in the medical specialties. New York: McGraw-Hill, Blakiston Division; 1959.

39. Harrington DO. Ocular Manifestations of Psychosomatic Disorders. JAMA. 1947;133(10):669-75.

40. Barry Junior H, Marshall FE. Maladjustment and maternal rejection in retrolental fibroplasia. Ment Hyg. 1953;37(4):570-80.

41. Hallenbeck J. Pseudo-retardation in retrolental fibroplasia. New Outlook Blind. 1954;48(9):301-7.

42. Elonen A. Problems in relation to establishing a differential diagnosis in the age group of the pre-school blind child. Amer Found Blind Pubi. 1952;(2):5-13.

43. Elonen AS, Norris M, editors. The Preschool Blind Child Project of the University of Chicago Medical Clinics. Chicago: National Conference of Social Work; 1952.

44. Blank HR. Psychoanalysis and blindness. Psychoanalytic Quarterly. 1957;26(1):1-24.

45. Mucci PR, Galhardo RA, Belfort R, Mello PAA. Influência da orientação psicológica na fidelidade ao tratamento em portadores de glaucoma crônico simples. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(1):65-70.

46. Botelho NLP, Volpini M, Moura EM. Aspectos psicológicos em usuários de prótese ocular. Arq Bras Oftalmol. 2003;66(5):637-46.

47. Moreira LB, Alchieri JC, Belfort Junior R, Moreira H. Aspectos psicossociais do paciente com ceratocone. Arq Bras Oftalmol. 2007;70(2):317-322.

48. Messa AA, Mattos RB, Areco KCN, Sallum JMF. Vision-related quality of life in children with retinopathy of prematurity. Arq Bras Oftalmol. 2015;78(4):224-8.

49. Messa AA. Qualidade de vida relacionada a visão e aspectos psicológicos na retinopatia da prematuridade. São Paulo: Universidade de Federal de São Paulo; 2013.

50. Selye H. The Evolution of the Stress Concept: The originator of the concept traces its development from the discovery in 1936 of the alarm reaction to modern therapeutic applications of syntoxic and catatoxic hormones. Am Sci. 1973;61(6):692-9.

51. Faro A, Pereira ME. Estresse: Revisão Narrativa da Evolução Conceitual, Perspetivas Teóricas e Metodológicas. Psic, Saúde & Doenças. 2013 Mar;14(1):78-100.

52. Deater-Deckard K, Panneton R. Parental Stress and Early Child Development: Adaptive and Maladaptive Outcomes. Manhattan, NY: Springer International; 2017.

53. Drews C, Celano M, Plager DA, Lambert SR. Parenting stress among caregivers of children with congenital cataracts. J AAPOS. 2003 Aug;7(4):244-50.

54. Theule J, Wiener J, Tannock R, Jenkins JM. Parenting stress in families of children with ADHD a meta-analysis. J Emot Behav Disord. 2013 Mar;21(1):3-17.

55. Floyd FJ, Gallagher EM. Parental Stress, Care Demands, and Use of Support Services for School-Age Children with Disabilities and Behavior Problems. Family Relations. 1997;46(4):359-71.

56. Lopes MCB, Salomão SR, Berezovsky A, Tartarella MB. Avaliação da qualidade de vida relacionada à visão em crianças com catarata congênita bilateral. Arq Bras Oftalmol. 2009 Aug;72(4):467-480.

57. Weinreb RN, Grajewski AL, Papadopoulos M, Grigg J, Freedman S. Childhood glaucoma. Amsterdam, Paises Baixos: Kugler Publications; 2013.

58. Avery RA, Hardy KK. Vision specific quality of life in children with optic pathway gliomas. Journal of neuro-oncology. 2014; 116(2):341-7.

59. Abidin R, Burke W, editors. The development of the parenting stress index. Toront o: Annual meeting of the American Psychological Association; 1978.

60. Innocenti MS, Huh K, Boyce GC. Families of Children with Disabilities: Normative Data and Other Considerations on Parenting Stress. Topics Early Child Spec Educ. 1992 Oct;12(3):403-27.

61. Sakkalou E, Sakki H, O'Reilly MA, Salt AT, Dale NJ. Parenting stress, anxiety, and depression in mothers with visually impaired infants: a cross-sectional and longitudinal cohort analysis. Dev Med Child Neurol. 2018 Mar;60(3):290-8.

 

Financiamento: Declaram não haver.

Conflitos de Interesse: Declaram não haver.

Recebido em: 18 de Junho de 2019.
Aceito em: 30 de Agosto de 2019.


© 2024 Todos os Direitos Reservados