Artigo

Acesso aberto Revisado por pares

1589

Visualizações

 


Editorial

Sobre a necessidade de políticas nacionais de educação em saúde ocular no Brasil

Need for national eye health education policies in Brazil

Ricardo Noguera Louzada1,2; Adroaldo de Alencar Costa Filho1; Milton Ruiz Alves2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2024.0001

A saúde, maior bem do ser humano, é dinâmica. O perfil epidemiológico muda, a pirâmide etária se inverte e surgem novas doenças. O avanço tecnológico é cada vez mais rápido e inclui, além das áreas próprias da medicina, todo o arcabouço social e da comunicação, como os recursos da internet e das redes sociais1.

A base da saúde ocular deve ser estruturada e fortalecida nos primeiros anos de vida, enquanto é possível reverter e tratar alterações como ambliopia. O desenvolvimento da visão ocorre gradualmente a partir do nascimento até aproximadamente os 7 anos de idade, quando atinge o nível de acuidade visual (AV) do adulto. Em idade escolar, cerca de 20-25% das crianças apresentam algum tipo de problema ocular, sendo dignos de nota os erros de refração não corrigidos, a ambliopia e o estrabismo2,3. Do ponto de vista da saúde pública, o exame oftalmológico de rotina nas crianças é dispendioso e mesmo inexequível. Assim, a aplicação de teste de acuidade visual (TAV) em escolares, bem como a observação de sinais e sintomas indicativos de problemas oculares pelo professor em classe, no nosso meio, apresentam-se como as formas mais aconselháveis para a detecção de problemas oculares na escola4. No Estado de São Paulo, durante a vigência do Plano de Oftalmologia Sanitária Escolar (POSE), no período de 1973 a 1976, a aplicação do TAV pelo professor em sala de aula apresentava concordância de até 92,29% com a aplicação do TAV pelo médico oftalmologista5. No entanto, o percentual de acertos do TAV realizada pelos professores da rede de ensino oficial estadual nos escolares do município de São Paulo atendidos no Programa Visão do Futuro nos anos de 2011 a 2020, caiu para cerca de 50%. Estes dados indicam que o professor não prescinde do treinamento para realizar com bom acerto o TAV. Enfatiza-se que o professor é fundamental no processo de detecção de alterações visuais, implantação e efetivação de programas de saúde ocular das crianças em fase escolar. A convivência diária com os alunos permite ao professor detectar mudanças de comportamento ou no rendimento escolar que podem estar vinculadas a distúrbios visuais6,7. Fica patente, portanto, a necessidade de políticas nacionais de educação em saúde ocular, permanentes e sustentáveis, que resgatem o professor como peça fundamental para a identificação e encaminhamento dos escolares que necessitarem dos serviços oftalmológicos credenciados para a realização do exame médico oftalmológico completo.

Ressalta-se, também, que as prevalências de miopia e alta miopia continuam aumentando em todo o mundo. As diretrizes de tempo de uso de tela da Organização Mundial da Saúde recomendam que crianças de 5 a 17 anos não tenham mais de duas horas de tempo de tela recreativo por dia e apenas uma hora por dia para crianças em idade pré-escolar8. A quantidade de tempo de tela reduz o sono e o desempenho escolar9, enquanto atividades ao ar livre podem inibir a progressão da miopia em crianças míopes dos 6 aos 7 anos, em 30% em um ano10. Bullimore e Brennan (2019)11 mostraram que um terço de toda deficiência visual global é atribuível à miopia; que cada -1,00D de aumento de miopia eleva o risco de maculopatia em 30%, glaucoma em 20% e deficiência visual em 30%; e que a redução de apenas -1,00D na progressão da miopia evitaria 1 milhão de casos de deficiência visual nos EUA. Novamente, não há no país políticas nacionais de educação em saúde, permanentes e sustentáveis, voltadas para o controle da progressão da miopia em crianças e/ou para reduzir os riscos de perdas visuais esperadas na vida adulta.

A catarata representa cerca de 48% dos casos de deficiência visual no mundo, sendo uma causa recuperável por meio de cirurgia. O idoso com baixa visão por catarata perde autonomia em diversas atividades; sua autoestima é baixa e está exageradamente predisposta a quedas12. A cirurgia de catarata apresenta alta eficiência, alto custo-benefício no tratamento e na reabilitação visual da pessoa. Estima-se que adotando-se o corte na AV corrigida de 0,5 ou menos, seriam necessárias 5 mil cirurgias por milhão de habitantes ou 900 mil cirurgias/ano13. A expectativa da Agência de Prevenção da Cegueira (IAPB) é de 3 mil cirurgias por milhão de habitantes para evitar acúmulo excessivo da demanda reprimida13. Para o Brasil atingir esta taxa seria necessário atualizar a tabela de honorários do Sistema Único de Saúde (SUS) e tornar realidade o credenciamento universal do médico oftalmologista no SUS12.

O glaucoma é a segunda maior causa de cegueira irreversível no mundo. No Brasil, estima-se que 2-3% da população, acima de 40 anos, possa ter a doença (o que representa cerca de 1,5 milhão de pessoas), sendo que em 50% a 60% destes, o diagnóstico é de glaucoma primário de ângulo aberto e em torno de 20% de glaucoma primário de ângulo fechado13. Para reduzir o número de cegos por glaucoma no Brasil, três medidas se fazem prioritárias: ampliar o conhecimento da população sobre a doença; garantir que a população pertencente aos grupos de risco (maiores de 50 anos, histórico familiar da doença, afrodescendentes, pacientes com pressão intraocular elevada) seja submetida a exame oftalmológico; e garantir o acesso ao tratamento (com o fornecimento dos colírios necessários) e a educação dos pacientes sobre o seu uso14. Como política de combate à cegueira pelo glaucoma existe no Brasil, por sugestão do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), desde 2008 através da Portaria 288 do Ministério da Saúde o Programa de Atenção ao Paciente Portador de Glaucoma que fornece gratuitamente pelo SUS colírios de 1ª, 2ª e 3a linhas para tratamento do glaucoma14. No entanto, ocorre por parte dos doentes uma baixa adesão aos colírios antiglaucomatosos que varia entre 30% e 80% na literatura15 e sabe-se que o não uso adequado dos colírios está relacionado ao mal controle da pressão intraocular e à neuropatia óptica, levando à perda visual progressiva16. Entre os vários motivos apresentados na literatura está a falta de conhecimento sobre a doença, o esquecimento, a falta de confiança no médico, os efeitos colaterais dos colírios, e até mesmo o fato de o paciente não entender bem sobre a doença nem acreditar que a doença cause cegueira15. Novamente, fica patente a necessidade de políticas nacionais de educação em saúde permanentes e sustentáveis voltadas para educar o paciente portador de glaucoma.

O Brasil é o 5º país em incidência de diabetes melito (DM) no mundo, com 16,8 milhões de doentes adultos (20 a 79 anos), perdendo apenas para China, Índia, Estados Unidos e Paquistão. A estimativa da incidência da doença para 2030 chega a 21,5 milhões17. O diabético tem cerca de 25 vezes mais chance de desenvolver cegueira do que um indivíduo não diabético18,19. Dos diabéticos tipo 1, 25% desenvolverá algum grau de retinopatia diabética (RD) após período de 5-10 anos, 70% após 10 anos e mais de 90% após 30 anos. Nos diabéticos tipo 2, 10% já apresentam algum tipo de RD na primeira consulta oftalmológica, 25% desenvolverão RD após 10 anos e 60% após 15 anos20. Assim, da dimensão de pacientes cegos no Brasil, calcula-se que 5% são resultantes da RD21. O número crescente de pessoas diagnosticadas com DM no Brasil mostra a necessidade de direcionar políticas de educação em saúde pública para atuarem com impacto na redução das estatísticas de cegueira evitável, o que o CBO e seus associados vem fazendo, contemplando entre as prioridades na luta contra o DM, elevar o nível de conhecimento dos diabéticos sobre o tema RD em DM22,23. Com as políticas de educação em saúde pública busca-se, sobretudo, mudança de atitude, comportamento, inclusão social e pincipalmente aderência crônica aos tratamentos.

Na prevenção da RD, os esforços terapêuticos estão centrados nos fatores de risco para o aparecimento e agravamento da RD e no tratamento cirúrgico das lesões com alto risco para perda visual24,25. Inicialmente, a educação do paciente quanto à doença e quanto ao seu controle glicêmico rigoroso irá permitir um melhor prognóstico para qualquer tratamento empregado. O desafio, sempre, é encontrar uma solução para se viver mais e melhor. Faz-se necessário, portanto, o desenvolvimento de políticas de saúde orientadas para ganhos em anos de vida saudável, livres de doença e incapacidade, com resposta adequada e de qualidade às pessoas com dependência, agregando apoio às famílias. A promoção, recuperação e manutenção do conforto e da qualidade de vida deveriam se basear na prevenção, reabilitação, readaptação e reintegração social26.

A degeneração macular relacionada à idade (DMRI) é principal causa de cegueira legal em indivíduos acima de 50 anos, em países industrializados a prevalência de cegueira é de 8,7% entre os indivíduos acometidos pela doença12. Cerca de 23 milhões de brasileiros estão na faixa etária superior aos 65 anos, cerca de 14% deles apresentam DMRI (aproximadamente 3 milhões de pessoas). Sendo que deste total, entre 10% e 15% apresentam DMRI neovascular (responsável por 90% dos casos de cegueira). A forma neovascular da DMRI e o padrão terapêutico atual são injeções intravítreas com inibidores do fator de crescimento endotelial vascular (VEGF). Os pacientes com baixa visão necessitarão de reabilitação visual, apoio psicológico e ajustes no ambiente. O principal fator de risco para a DMRI é o aumento da idade. Etnia caucasiana, aterosclerose e tabagismo, assim como certos polimorfismos genéticos, também estão associados. Entretanto, entre todos esses fatores, apenas o tabagismo é um fator modificável, e sua interrupção reduz o risco da doença e de sua evolução.

Embora, sistemas de inteligência artificial (IA) detectem o glaucoma, a RD e a DMRI sem a necessidade de médico para interpretar a imagem ou resultados27,28, ressalta-se que as políticas de saúde atuais, de organizações governamentais e não governamentais, são insuficientes para proporcionar o controle ou, pelo menos, minimizar os efeitos deletérios na visão dessas doenças nos próximos anos. Por isso, a incorporação de mais tecnologia junto com políticas de educação em saúde, terão a finalidade de garantir saúde qualitativa, de baixo custo e alta eficiência.

 

REFERÊNCIAS

1. van der Loo T, Britto A. In: SPDM (org). Prefácio. A Saúde no Brasil em 2021. Reflexões sobre os desafios da próxima década. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012:p.9.

2. Alves MR, Kara-José N. Triagem visual na escola. In: Alves MR, Kara José N (Eds.). O Olho e a Visão. O que fazer pela saúde ocular de nossas crianças. São Paulo, Vozes, 1996, p.79-84.

3. Kara-José N, Alves MR. Problemas oculares mais frequentes em escolares. In: Conceição JAN (Coord.). Saúde Escolar. A criança, a vida e a escola. São Paulo, Sarvier, 1994, p. 195-2003.

4. Temporini ER. Aspectos do Plano de Oftalmologia Sanitária do Estado de São Paulo. Rev Saude Publica. 1982;16(4):243-60.

5. Temporini ER, Kara-José N, Taiar A, Ferrarini ML. Validade da aferição da acuidade visual realizada pelo professor em escolares de 1a à 4a série de primeiro grau de uma escola pública do município de São Paulo, Brasil. Rev Saude Pública. 1977;11(2):229-37.

6. Armond JE, Temporini ER, Alves MR. Promoção da saúde ocular na escola: percepções de professores sobre erros de refração. Arq Bras Oftalmol. 2001;64(5):395-400.

7. Alves MR, Temporini ER, Kara-José N. Atendimento oftalmológico de escolares do sistema público de ensino no município de São Paulo. Aspectos médicos-sociais. Arq Bras Oftalmol. 2000;63(5):359-363.

8. Chaput JP, Willumsen J, Bull F, Chou R, Ekerlund U, Firth J, et al. 2020 WHO guidelines on physical activity and sedentary behaviour for children and adolescents aged 5–17years: summary of the evidence. Int J Behav Nutr Phys Act. 2020;17(1),141.

9. Gentile DA, Reimer RA, Nathanson AI, Walsh DA, Eisenmann JC. Protective effects of parental monitoring of children's media use: a prospective study. JAMA Pediatr. 2014;168(5):479-84

10. Wu PC, Chen CT, Lin KK, Sun CC, Kuo CN, Huang HM, et al. Myopia Prevention and Outdoor Light Intensity in a School-Based Cluster Randomized Trial. Ophthalmology. 2018;125(8):1239-1250.

11. Bullimore M, Brennan N. Myopia Control: Why Each Diopter Matters. Optom Vis Sci. 2019;96(6):463-465.

12. Alves MR. Programas de combate às causas prevalentes de baixa Visão Visão e Cegueira. In Alves MR. Política Nacional de Atenção a Oftalmologia. In Abib FC, Alves MR, Kara-José N. Tema Oficial do 62º Congresso Brasileiro de Oftalmologia Maceió 2018. p.297-305.

13. Alves MR, Castro RS. Situación atual de la cirugia de catarata em Brasil. Resultados do Ministerio de la Salud Y del Consejo Brasileño de Oftalmologia. In: Arieta CEL, Duerksen R, Lassingh V. Manual de Ceguera por Catarata em America Latina. Vision 2020. Bogotá, 2011.193-7.

14. Umbelino CC. As condições de Saúde Ocular no Brasil 2023. Disponível em: em: https://static.poder360.com.br/2023/06/condicoes-saude-ocular-cbo-2023-oftalmologia.pdf, Acessado em 09/05/2024.

15. Newman-Casey PA, Robin AL, Blachley T, Farris K, Heisler M, Resnicow K, et al. The most common barriers to glaucoma medication adherence: a cross-sectional survey. Ophthalmology. 2015:122(7):1308-16.

16. Lee PP, Walt JW, Rosenblatt LC, Siegartel LR, Stern LS; Glaucoma Care Study Group. Association between intraocular pressure variation and glaucoma progression: data from a United States chart review. Am J Ophthalmol. 2007;144(6):901-907.

17. IDF Diabetes Atlas 2021. International Diabetes Federation. Disponível em: https://diabetesatlas.org/atlas/tenth-edition/ Acessado em 05/05/2024.

18. Souza I. Avaliação da resolubilidade no encaminhamento de pacientes diabéticos ao oftalmologista em um centro de atendimento especializado do oeste do estado do Paraná. TCC (Graduação em Medicina) - Universidade Federal do Paraná. Toledo, p. 42. 2022.

19. Ghamdi AHA. Clinical Predictors of Diabetic Retinopathy Progression; A Systematic Review. Curr Diabetes Rev. 2020; 16(3):242-247.

20. Lechner J, O'Leary OE, Stitt AW. The pathology associated with diabetic retinopathy. Vision Res. 2017Oct:139:7-14.

21. Hirakawa TH, Costa WC, Nakahima F, Ferreira AIC, Ribeiro LB, Ticianeli JG, et al. Conhecimento dos pacientes diabéticos usuários do Sistema Único de Saúde acerca da retinopatia diabética. Rev Bras Oftalmol. 2019;78(2):107-111.

22. CBO 24 horas pelo Diabetes. Disponível em: https://www.conass.org.br/24h-pelo-diabetes-cbo-mobiliza-mais-uma-edicao-para-conscientizar-sobre-doenca-que-pode-causar-a-cegueira/. Acessado 29/04/2024.

23. Campanha Diabetes Novembro Azul no CIDH alerta para diagnóstico e prevenção de riscos da doença. Disponível em https://www.saude.ce.gov.br/2023/11/13/novembro-diabetes-azul-diagnostico-prevencao-riscos/ Acessado em: 29/04/2024.

24. Diretriz da Sociedade Brasileira de Diabetes – Update 2/2023. Disponível em: https://diretriz.diabetes.org.br/metas-no-tratamento-do-diabetes/ Acessado em 29/04/2024.

25. Lavinsky J, Borges RM, Lavinsky D. Retinopatia diabética. In Moreira Jr CA, Lavinsky J, Ávila M (eds): Retina e Vítreo. Série Brasileira de Oftalmologia 2023, p.185-214.

26. Oliveira Jr. JRN. Cidadão e família no centro do sistema. In: SPDM (org.) A Saúde no Brasil em 2021. Reflexões sobre os desafios da próxima década, São Paulo: Cultura Acadêmica.2012.p86-88.

27. Louzada RN, Belizário IV, Traina AJ, Alves MR. Importância do algoritmo como ferramenta para tomada de decisão do especialista: inteligência artificial na oftalmologia. eOftalmo. 2022;8(3):61-4.

28. Louzada RN, Belizario IV, Monteiro MLR, Porto FBO, Alves MR, Traina AJM. Inteligência artificial nos exames de imagem: Como manter os dados para o futuro. eOftalmo. 2023;9(3):99-101.

 

INFORMAÇÃO DOS AUTORES

» Ricardo Noguera Louzada
https://orcid.org/0000-0002-9610-5768
http://lattes.cnpq.br/5978866539118374
» Adroaldo de Alencar Costa Filho
https://orcid.org/0009000792979111
http://lattes.cnpq.br/3152075298233631
» Milton Ruiz Alves
https://orcid.org/0000-0001-6759-5289
http://lattes.cnpq.br/6210321951145266

 

 

Fonte de financiamento: Declaram não haver.

Conflitos de Interesse: Declaram não haver.

Recebido em: 11 de Maio de 2024.
Aceito em: 23 de Maio de 2024.


© 2024 Todos os Direitos Reservados