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Casos Clínicos Discutidos

Ceratopigmentação como tratamento cosmético de leucoma unilateral: relato de caso

Keratopigmentation as a cosmetic treatment for unilateral leukoma: case report

Ana Bárbara Dias Lopes Urzedo; Paula Basso Dias; Nayara Teixeira Flügel;Daniel Wasilewski

DOI: 10.17545/eOftalmo/2023.0023

RESUMO

O objetivo deste é relatar um caso de leucoma unilateral por úlcera herpética tratado com ceratopigmentação (tatuagem corneana). Homem, 53 anos, com queixa estética devido a opacidade corneana crônica em olho esquerdo. Acuidade visual com correção de 20/20 em olho direito e movimento de mãos em olho esquerdo. A biomicroscopia de olho direito não havia alterações, enquanto o olho esquerdo apresentava leucoma total com neovasos superficiais e profundos 360°, atalamia e afinamento corneano nasal inferior. Indicada a ceratopigmentação no olho esquerdo, a fim de melhorar a qualidade de vida e autoconfiança do paciente. Realizada com a técnica superficial manual, onde duas colorações de tinta profissional foram misturadas para atingir coloração adequada e simétrica ao olho contralateral. Paciente extremamente satisfeito, evoluiu sem apresentar complicações no pós-operatório imediato. No pós-operatório tardio, evoluiu com leve calcificação sobre o pigmento, mas continuava satisfeito com o resultado estético. O caso descrito mostra uma indicação clássica de tatuagem corneana - leucoma unilateral com grande repercussão estética e assimetria. A ceratopigmentação também pode ser utilizada para tratar funcionalmente a fotofobia ou diplopia associada à ausência da íris (por atrofia, trauma, aniridia ou coloboma).

Palavras-chave: Tatuagem corneana; Ceratopigmentação; Leucoma corneano.

ABSTRACT

The objective of this study is to report a case of unilateral leukoma due to a herpetic ulcer treated with keratopigmentation (corneal tattoo) in a 53 years old male patient who presented with an aesthetic complaint due to chronic corneal opacity in the left eye. Corrected visual acuity was 20/20 in the right eye and hand movement in the left eye. Biomicroscopy of the right eye showed no alterations, whereas the left eye had total leukoma with superficial and deep neovessels at 360°, athalamia, and inferior nasal corneal thinning. Keratopigmentation in the left eye was indicated to improve the patient’s quality of life and self-confidence. It was performed using the superficial manual technique by mixing two professional ink hues to achieve adequate coloration concordant to the contralateral eye. The patient was extremely satisfied and there were no complications in the immediate postoperative period. In the late postoperative period, he developed a slight calcification of the pigment, but was still satisfied with the aesthetic result. This case shows a classic indication of corneal tattoo, namely a unilateral leukoma with great aesthetic repercussions and asymmetry. Keratopigmentation can also be used to functionally treat photophobia or diplopia associated with the absence of the iris (due to atrophy, trauma, aniridia, or coloboma).

Keywords: Corneal tattoo; Keratopigmentation; Corneal leukoma.

INTRODUÇÃO

A tatuagem corneana ou ceratopigmentação (KTP), consiste em um método utilizado para tratar, cosmética ou funcionalmente, opacidades de córnea ou defeitos irianos/pupilares1-4. É considerado uma alternativa ao uso de próteses ou lentes de contato, principalmente em pacientes com defeitos cosméticos graves que são intolerantes a lentes de contato e considerados de alto risco para transplante penetrante5.

As indicações podem ser cosméticas, visando restabelecer a simetria entre os olhos, ou terapêuticas, com o intuito de tratar fotofobia, diplopia, visão de halos e ofuscamento secundários à alguma alteração anatômica ocular1,4.

Atualmente, são descritas duas técnicas para ceratopigmentação: superficial, dividida em manual (SMK) e automatizada (SAK) e intraestromal, dividida em manual (MIK) e assistida por femtossegundo (FAK)1,6.

As complicações da KTP podem ser intraoperatórias ou pós-operatórias, sendo a mais comum a sensibilidade à luz e, as menos comuns, alteração na ressonância nuclear magnética (distorção no globo ocular) e limitações de campo visual1,7-9.

 

RELATO DO CASO

Homem, 53 anos, atendido no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná com queixa estética devido à opacidade corneana crônica em olho esquerdo (OE), negava dor. Relatava história de úlcera herpética há cerca de 1 ano, sem tratamento na ocasião. Ao exame oftalmológico constatou-se acuidade visual com correção (AVCC) de 20/20 em olho direito (OD) e movimento de mãos (MM) em OE. A biomicroscopia de OD não havia alterações, enquanto OE apresentava ausência de sensibilidade tátil, leucoma total com depósitos de cálcio e neovasos superficiais e profundos 360°, atalamia e afinamento corneano nasal inferior, sem sinais de inflamação ativa. Devido ao leucoma corneano total, não foi possível realizar o mapeamento de retina. Na ecografia de OE foram evidenciados múltiplos ecos vítreos heterogêneos sugestivos de processo inflamatório crônico intenso.

Nas consultas subsequentes, paciente evoluiu com AVCC de percepção luminosa (PL) em OE, e devido às alterações vítreas na ecografia e alterações do segmento anterior descritas acima, assim como a grande chance de rejeição do transplante de córnea pelos neovasos difusos superficiais e profundos; discutido o caso com o paciente e, pelo baixo prognóstico visual, foi indicado a ceratopigmentação em OE, a fim de melhorar a qualidade de vida e autoconfiança do paciente, sendo o seu maior desejo no momento.

Foi realizada a KTP com a técnica superficial manual, onde micropunturas foram aplicadas nas camadas superficiais do estroma (Figura 1). A técnica consistiu na retirada do epitélio e delineação da área central corneana - que configura o diâmetro pupilar - com caneta dermatográfica, com posterior introdução a 90º de uma agulha de insulina angulada como um cistítimo no estroma corneano. Duas colorações de tinta profissional para tatuagem “Easy Glow Professional 30ml”, Electric Ink ® (cor preto para a pupila e a mistura da cor preto com o marrom escuro para a íris, a fim de conseguir atingir a coloração adequada e simétrica ao olho contralateral). As tintas eram compostas por água deionizada, surfactante não iônico, glicerina vegetal, propilenoglicol e pigmentos minerais inorgânicos micronizados e pigmentos orgânicos (C.I. 77891, 11741, 21110, 12475, 73915, 51319, 74160, 74260, 77266), e esterilizadas por raios gama.

 


Figura 1. Intraoperatórias imediatamente antes e após a aplicação do pigmento pela técnica de ceratopigmentação manual superficial.

 

No pós-operatório (PO) foi prescrito corticoide tópico (acetato de prednisolona 1%) e antibiótico tópico (cloridrato de moxifloxacino), além da colocação de uma lente de contato terapêutica para melhor conforto. Foi realizada a profilaxia para herpes vírus com aciclovir 800mg/dia 5 dias antes do procedimento e no PO durante o tempo de uso do corticoide tópico, pelo histórico de úlcera herpética. Paciente extremamente satisfeito, evoluiu sem apresentar desbotamento de pigmento ou outras complicações no pós-operatório imediato (Figura 2) e de uma semana, mantendo a visão de PL. No PO tardio de 1 ano, paciente evoluiu com leve calcificação sobre o pigmento (Figuras 3 e 4), mas continuava satisfeito com o resultado estético.

 


Figure 2. Pictures taken immediately after the surgery, evidencing the symmetry in coloration between both eyes.

 

 


Figura 3. Pós-operatório tardio (1 ano), mostrando leve assimetria entre ambos os olhos devido a depósitos de cálcio.

 

 


Figura 4. Pós-operatório tardio (1 ano), mostrando depósitos de cálcio sobre o pigmento.

 

DISCUSSÃO

A ceratopigmentação é uma técnica antiga, descrita pela primeira vez há mais de 2000 anos na Grécia, pelo médico Galeno de Pérgamo e, posteriormente, no ano 450 depois de Cristo, pelo médico Aécio, na tentativa de mascarar opacidades corneanas1,3,10.

Dentre as indicações cosméticas encontram-se leucoma de córnea total ou parcial, opacificação da borda doador-receptor em olhos com ceratoplastia prévia, edema corneano crônico, glaucoma congênito, entre outros1,2. Há ainda alguns relatos da KTP sendo utilizada para mudança eletiva na cor dos olhos11,12. Cabe ressaltar que, muitas vezes, a assimetria na aparência dos olhos afeta diretamente a qualidade de vida e a autoconfiança do paciente, como era o caso do paciente deste relato. Por outro lado, as indicações terapêuticas são: aniridia, iridodiálise, atrofia de íris, síndrome de Urrets-Zavalia, diplopia monocular, dentre outras. Fotofobia, visão de halos e ofuscamento constituem queixas comuns nos pacientes que apresentam essas condições1,4,5.

Dentre as técnicas superficiais utilizadas, a pioneira foi a superficial manual (SMK), na qual são realizadas micropunturas nas camadas superficiais do estroma, sendo esta manobra repetida até que a quantidade adequada de pigmento seja introduzida na córnea superficial13. Esta foi a técnica utilizada em nosso caso, com resultado estético simétrico pós-operatório imediato. Já a técnica superficial automatizada (SAK), consiste na aplicação de micropunturas utilizando um dispositivo puncional automático1,13.

Na técnica intraestromal manual (MIK) o pigmento é inserido no estroma anterior através de uma bolsa corneana intraestromal. Apresenta como vantagens: maior segurança, rapidez e tolerabilidade, deixando a superfície corneana intacta e, consequentemente, diminuindo a taxa de complicações1,4,13. Já a KTP assistida por femtossegundo consiste em uma técnica intraestromal na qual são realizados túneis estromais através do femtossegundo (FAK) com profundidade definida através do mapa paquimétrico, seguido da aplicação do pigmento colorido no túnel mais superficial, e do pigmento de cor mais escura no túnel mais profundo, com o objetivo de imitar a anatomia da íris4,14.

Dentre as complicações intraoperatórias, são relatadas perfuração, infecção secundária, erosões epiteliais e pigmentação subconjuntival. As complicações pós-operatórias incluem sensibilidade à luz, coloração inconsistente da opacidade, desbotamento do pigmento, uveíte, edema de córnea, conjuntivite, defeitos epiteliais e limitações de campo visual1,9,15,16. Uma série de casos brasileira descreveu oito pacientes submetidos a KTP com a técnica de dupla bolsa lamelar seguida de micropunção estromal, e apenas um paciente (12,5%) apresentou perfuração corneana, sendo o único caso de complicação intra ou pós operatória17. No estudo realizado por Alió et al., considerado o pai da KTP moderna, foram estudados 234 olhos submetidos às técnicas de SAK, FAK e MIK. A complicação mais comum encontrada foi a sensibilidade à luz (49%), seguida por desbotamento da cor (19%) e mudança de cor (19%)9. Um relato brasileiro mostrou estabilidade do pigmento no pós-operatório tardio de 1 ano, tendo realizada a KTP associada a ceratoplastia lamelar em paciente com leucoma e irregularidades da córnea18.

Sabe-se que o herpes vírus (HSV) permanece em estado de latência no gânglio do trigêmeo, onde constantemente são produzidos RNAs virais. Exposição ultravioleta, febre, lesões teciduais, distúrbios hormonais ou imunossupressão podem causar reativação viral nos tecidos inervados pelo gânglio trigêmeo, causando diferentes formas de ceratite por HSV: epitelial, estromal ou endotelial19. Dessa forma, foi optado por realizar o aciclovir em dose profilática, devido a história de úlcera herpética do paciente.

Os pigmentos utilizados para a KTP têm como características fundamentais a estabilidade, segurança e capacidade de suportar longa exposição à luz, preservando a natureza transparente da córnea. Os pigmentos minerais micronizados possuem como vantagem em relação aos pigmentos naturais a redução da chance de desenvolvimento reação de corpo estranho1,3,9. No caso descrito, optou-se pelo pigmento mineral e o paciente evoluiu sem complicações orgânicas ou funcionais.

O caso descrito mostra uma indicação clássica de tatuagem corneana - leucoma unilateral com grande repercussão estética e assimetria. Procedimento realizado sem intercorrências e paciente extremamente satisfeito com o resultado, mesmo apresentando leve recidiva do depósito de cálcio no PO tardio.

 

REFERÊNCIAS

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INFORMAÇÃO DOS AUTORES

 

 

 

 

 

 

 

Financiamento: Declaram não haver.

Conflitos de Interesse: Declaram não haver.

Recebido em: 1 de Dezembro de 2022.
Aceito em: 6 de Maio de 2023.


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