Artigo

Acesso aberto Revisado por pares

1239

Visualizações

 


Editorial

Pode o confinamento domiciliar prolongado durante a pandemia da COVID-19 aumentar a prevalência e/ou progressão de miopia em crianças em idade escolar?

May prolonged home confinement during the COVID-19 pandemic increase the prevalence and/or progression of myopia in school-aged children?

Milton Ruiz Alves1; Edson dos Santos-Neto1; Keila Monteiro de Carvalho2

DOI: 10.17545/eOftalmo/2021.0011

“Otimismo é quando a gente sorri para o futuro “por causa de”; Esperança é quando a gente sorri para o futuro “a despeito de”.
Rubem Alves

A pandemia da COVID-19 tem apresentado imensos desafios em todo o mundo1. Para conter o contágio, muitos países implementaram medidas restritivas para reduzir aglomeração e formação de multidões2. No auge da crise, quase 1,6 bilhões de crianças em 195 países não puderam estudar em suas salas de aula.3 Estudando em casa, alunos e crianças, em todo o mundo, sempre que possível, estão usando a tecnologia de cursos online, videoaulas e livros didáticos eletrônicos3. O Brasil é um dos países onde as escolas estão fechadas por mais tempo e, até hoje, 18 estados ainda mantêm a educação apenas remotamente4.

O confinamento domiciliar prolongado, provavelmente, terá um impacto significativo na incidência global de miopia5-8. Embora muitos investigadores acreditem que a progressão da miopia tenha sido acelerada durante o período do afastamento social da pandemia de COVID-19, faltam evidências para apoiar essa pressuposição.6 No entanto, a miopia representa uma séria preocupação de saúde pública por duas razões principais4. Em primeiro lugar, a miopia não corrigida representa uma das principais causas de incapacidade visual em crianças, particularmente, em países de baixa e média renda. Em segundo lugar, a alta miopia na população pediátrica está ligada a um alto risco de complicações potencialmente fatais nas próximas gerações de idosos.

Nos últimos anos, o uso da internet em telas de digitais vem aumentado rapidamente entre jovens9,10. As atividades das crianças em ambientes internos e o tempo de uso de telas digitais aumentaram, e as atividades ao ar livre diminuíram. Sabe-se que a diminuição de atividades ao ar livre está significativamente associada a uma maior incidência de miopia em crianças em idade escolar11-13. Estudos de intervenção revelaram que o aumento do tempo gasto ao ar livre diminuiu a incidência de miopia em crianças12,14. Uma meta-análise publicada em 2012 estimou que a razão de chances de desenvolver miopia foi reduzida em 2% para cada hora adicional de tempo gasto ao ar livre por semana15. A revisão sistemática mais recente concluiu que mais tempo gasto ao ar livre ajuda a retardar o aumento do comprimento axial ocular, bem como a reduzir o risco de miopia patológica16.

A baixa visão decorrente da miopia compromete o desenvolvimento do indivíduo não só na infância, mas também ao longo da sua vida. Parece inevitável que a proporção de pessoas afetadas pela miopia aumente nas próximas décadas17. No Brasil, a prevalência de miopia tem permanecido baixa até agora e a prevalência de alta miopia ainda menor18,19. Essa situação levanta a questão se são necessárias medidas tão intensas de saúde pública para a prevenção da progressão da miopia em nosso país como foram implantadas em outras regiões, como a Ásia Oriental, embora, a prevenção de miopia reduza o impacto da miopia na vida do indivíduo20. Isso poderia ser particularmente relevante para as formas hereditárias de miopia para as quais uma medida preventiva ainda não foi demonstrada20. O aumento do tempo gasto ao ar livre é a única intervenção conhecida para reduzir o aparecimento da miopia20 e os efeitos sazonais marcados observados na progressão da miopia, pelo menos, sugerem que a sua progressão pode ser regulada de forma consistente modulando os efeitos conhecidos das pressões educacionais e do tempo gasto ao ar livre21,22.

Um estudo transversal prospectivo foi realizado durante 6 anos consecutivos (2015-2020) para investigar alterações refrativas e prevalência de miopia em 123. 535 crianças de 6 a 13 anos de 10 escolas primárias em Feicheng, China8. Devido à pandemia da COVID-19 em 2020, essas crianças em idade escolar foram confinadas em suas casas, e cursos online foram oferecidos. Este estudo mostrou que a prevalência de miopia em 2020 foi maior do que a maior prevalência de miopia em 2015-2019 para crianças de 6 anos (21,5% vs. 5,7%), 7 (26,2% vs. 16,2%) e 8 anos (37,2% vs. 27,7%). Portanto, a prevalência de miopia em 2020 foi aproximadamente 3 vezes maior para crianças de 6 anos, 2 vezes maior para crianças de 7 a 1,4 vezes maiores para crianças de 8 anos. Este aumento substancial na prevalência de miopia não foi observado nas faixas etárias mais altas (9-13 anos), apesar de as crianças com mais idades (séries 3-6) terem sido submetidas à cursos on-line diários mais intensivos (2,5 horas) em comparação com os estudantes mais jovens (séries 1-2, 1 hora diária). Esses achados levaram os investigadores a conjecturar a hipótese de que crianças mais jovens são mais sensíveis à mudança ambiental do que as crianças mais velhas8. O estudo forneceu evidências de que, entre crianças de 6 a 8 anos, a plasticidade da miopia seria mais alta e o controle da miopia poderia ser mais fácil. Acima dessa janela etária, a plasticidade da miopia seria mais baixa, e a miopia seria mais difícil de controlar durante mudanças ambientais8. E esse desvio miópico seria temporário ou permanente? Um estudo recente sugere que o desvio miópico foi revertido parcialmente após a suspensão do confinamento domiciliar das crianças, sugerindo que tanto o espasmo acomodativo quanto as mudanças estruturais teriam contribuído para a aceleração desse desvio6.

A magnitude da miopia está diretamente associada ao risco de miopia patológica23. A prevalência da miopia patológica é de apenas 1% a 19% na população de miopia baixa a moderada (-3 D), mas a sua prevalência é de 50% a 70% na população de miopia alta24,25. Um incremento de 1-D na miopia está associado a um aumento de 67% na prevalência de miopia patológica26. Além da magnitude da miopia, a idade é um fator importante no desenvolvimento da miopia patológica20. A idade de início da miopia ou a duração da progressão da miopia foram os preditores mais importantes da alta miopia20.

Estratégias para retardar o início da miopia e/ou a progressão da miopia para a alta miopia devem se concentrar em crianças com idade mais jovem de início de miopia ou com maior duração de progressão da miopia. Incentivar as crianças a passar mais tempo ao ar livre pode ser uma estratégia apropriada também para crianças muito pequenas8 porque dados de Cingapura mostraram que 10% dessas crianças desenvolveram miopia já aos 6 anos de idade, contrastando com a média da idade de início da miopia que era 8,5 anos27. O aumento do tempo gasto ao ar livre é a única intervenção conhecida para reduzir o aparecimento da miopia20. Considerando que futuros ensaios clínicos controlados confirmem que o estado refrativo das crianças mais jovens pode ser mais sensível às mudanças ambientais do que as crianças mais velhas, o aumento do tempo gasto ao ar livre deverá ser imperativo.

Uma série de novas intervenções para reduzir a progressão da miopia em crianças já atingiu alto nível de evidência28. Há evidência consistente de benefício para a prevenção do desenvolvimento da miopia em crianças com o uso tópico de atropina de baixa concentração e de lentes de contato gelatinosas multifocais, ortoceratologia e de novas lentes multifocais montadas em óculos20. Portanto, não se pode prescindir de um programa de vigilância oftalmológica pós-pandemia para crianças com miopia para a tomada de decisão com base em características demográficas e clínicas, fatores de risco e preferência individual, a fim de controlar melhor o início e a progressão da miopia nas crianças pós-pandemia8.

Em conclusão, o confinamento domiciliar prolongado durante a pandemia da COVID-19 foi associado a um a desvio miópico significativo entre crianças chinesas de 6 a 8 anos.8 No entanto, como as crianças pequenas estão em um período crítico para o desenvolvimento da miopia, e o estado refrativo dessa população pode ser mais sensível às mudanças ambientais8, enquanto o confinamento domiciliar for necessário, os pais deverão controlar o tempo de tela gasto pelas crianças o máximo possível e aumentar as suas atividade ao ar livre, mantendo um distanciamento social seguro.

 

REFERÊNCIAS

1. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19) pandemic. Available: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019. Access 12 May 2021.

2. Aquino EML, Silveira IH, Pescarini JM, Aquino R, Souza-Filho JA, Rocha AS. Social distancing measures to control the COVID-19 pandemic: potential impacts and challenges in Brazil. Ciênc. saúde coletiva [online]. 202; 25(1):2423-46.

3. Education during COVID-19; moving towards e-learning. Disposible: https://data.europa.eu/en/impact-studies/covid-19/education-during-covid-19-moving-towards-e-learning. Access: 12 May 2021.

4. Unicef: Fechamento de escolas na pandemia fez Brasil regredir duas décadas. Disposible: https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/04/05/fechamento-de-escolas-pandemia-fez-brasil-regredir-duas-decadas-diz-unicef.htm?cmpid=copiaecola. Access 12 May 2021.

5. Pellegrini M, Bernabei F, Scorcia V, Giannaccare G. May home confinement during the COVID-19 outbreak worsen the global burden of myopia? Graefes Arch Clin Exp Ophthalmol 2020; 258(9):2069-70.

6. Chang P, Zhang B, Lin L, Chen R, Chen S, Zhao Y, et al. Comparison of Myopic Progression before, during, and after COVID-19 Lockdown Ophthalmology 2021 (Pre-proof). Disposible: https://www.aaojournal.org/article/S0161-6420(21)00234-7/abstract. Access: 12 May 2021.

7. Xu L, Ma Y, Yuan J, Zhang Y, Wang H, Zhang G, et al. COVID-19 Quarantine Reveals Behavioral Changes Effect on Myopia Progression. Ophthalmology 2021 (Pre-proof) Disposible: https://pesquisa.bvsalud.org/global-literature-on-novel-coronavirus-2019-ncov/resource/en/covidwho-1185197. Access: 12 May 2021.

8. Wang J, Li Y, Much DC, Wei N, Qi X, Ding G, et al. Progression of Myopia in School-Aged Children after COVID-19 Home Confinement. JAMA Ophthalmol. 2021;139(3):293-300.

9. Bohnert M, Gracia P. Emerging Digital Generations? Impacts of Child Digital Use on Mental and Socioemotional Well-Being across Two Cohorts in Ireland, 2007-2018. Child Ind Res. 2021;14: 629-659.

10. Orben A. Teenagers, screens and social media: a narrative review of reviews and key studies. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2020;55(4):407-14.

11. Morgan IG, Ohno-Matsui K, Saw SM. Myopia. Lancet. 2012; 379(9827):1739-48.

12. He M, Xiang F, Zeng Y, Mai J, Chen Q, Zhang J, et al. Effect of time spent outdoors at school on the development of myopia among children in China: a randomized clinical trial. JAMA. 2015; 314(11):1142-1148.

13. Lingham G, Mackey DA, Lucas R, Yazar S. How measured near work, outdoor exposure and myopia in children. Br J Ophthalmol. 2020;104(11):1542-7.

14. Wu PC, Chen CT, Lin KK, Sun CC, Kuo CN, Huang HM, et al. Myopia prevention and outdoor light intensity in a school-based cluster randomized trial. Ophthalmology 2018;125(8):1239-50.

15. Sherwin JC, Reacher MH, Keogh RH, Khawaja AP, Mackey D, Foster PJ. The association between time spent outdoors and myopia in children and adolescents: a systematic review and meta-analysis. Ophthalmology 2012;119(10):2141-51.

16. Cao K, Wan Y, Yusufu M, Wang N. Significance of outdoor time for myopia prevention: a systematic review and meta-analysis based on randomized controlled trials. Ophthalmic Res 2020;63(2):97-105.

17. World Health Organization. The impact of myopia and high myopia. Disposible: https://www.who.int/blindness/causes/MyopiaReportforWeb.pdf Access: 12 May 2021.

18. Ávila M, Alves MR, Nishi M. As condições de saúde ocular no Brasil. Disposible: http://www.cbo.net.br/novo/publicacoes/Condicoes_saude_ocular_IV.pdf Access: 12 May 2021.

19. Vilar MMC, Abrahão MM, Mendanha DBA, Campos LM, Dália ERC, Teixeira LP, et al. Aumento da prevalência de miopia em um serviço oftalmológico de referência em Goiânia - Goiás. Rev Bras Oftalmol. 2016:75(5):356-9.

20. Jonas BJ, Ang M, Cho P, Guggenheim JA, He MG, Jong M, et al. IMI Prevention of Myopia and Its Progression. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2021;62(5):6.

21. Goss DA, Rainey BB. Relation of childhood myopia progression rates to time of year. J Am Optom Assoc. 1998;69(4):262-6.

22. Donovan L, Sankaridurg P, Ho A, Chen X, Lin Z, Thomas V, et al. Myopia progression in Chinese children is slower in summer than in winter. Optom Vis Sci. 2012;89(8):1196-202.

23. Ohno-Matsui K, Wu PC, Yamashiro K, Vutipongsatorn K, Fang Y, Cheung CMG, et al. IMI Pathological Myopia. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2021; 62(5):5.

24. Gao LQ, Liu W, Liang YB, Zhang F, Wang JJ, Peng Y, et al. Prevalence and characteristics of myopic retinopathy in a rural Chinese adult population: the Handan Eye Study. Arch Ophthalmol. 2011;129(9):1199-204.

25. Vongphanit J, Mitchell P, Wang JJ. Prevalence and progression of myopic retinopathy in an older population. Ophthalmology. 2002;109(4):704-11.

26. Bullimore MA, Brennan NA. Myopia control: why each diopter matters. Optom Vis Sci. 2019;96(6):463-5.

27. Chua SY, Sabanayagam C, Cheung YB, Chia A, Valenzuela RK, Tan D, et al. Age of onset of myopia predicts risk of high myopia in later childhood in myopic Singapore children. Ophthalmic Physiol Opt. 2016;36(4):388-94.

28. Huang J, Wen D, Wang Q, McAlinden C, Flitcroft I, Cheb H, et al. Efficacy comparison of 16 interventions for myopia control in children: a network meta-analysis. Ophthalmology. 2016;123(4): 697-708.

 

INFORMAÇÃO DOS AUTORES

Fonte de financiamento: Declaram não haver

Conflito de interesses: Declaram não haver

Recebido em: 16 de Maio de 2021.
Aceito em: 6 de Junho de 2021.


© 2024 Todos os Direitos Reservados