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Opinião de Especialistas

Astigmatismo: análise e síntese da ametropia astigmática

Astigmatism: analysis and synthesis of the astigmatic ametropia

Analysis and synthesis of the astigmatic ametropia

Sidney Julio Faria e Sousa

DOI: 10.17545/eoftalmo/2018.0020

RESUMO

Quando uma ametropia astigmática é detectada, é possível separar a aberração astigmática do erro esférico, para trabalharmos separadamente com cada um deles, e depois reagrupá-los em uma prescrição de óculos. Esse procedimento é facilmente realizado, representando o astigmatismo por um cilindro cruzado e o erro esférico pelo equivalente esférico da ametropia astigmática.

Palavras-chave: Astigmatismo; Refratometria; Erros Refrativos.

ABSTRACT

Once detected an astigmatic ametropia, it is possible to break it down in an astigmatic aberration and a spherical ametropia, address separately each of these elements and regroup them into spectacle lenses prescription. This aim is readily attainable by representing astigmatism by a cross cylinder and the spherical ametropia by the spherical equivalent of the refractive error.

Keywords: Astigmatism; Refractometry; Refractive Errors.

RESUMEN

Cuando se detecta una ametropía astigmática, es posible separar la aberración astigmática del error esférico, con el fin de que se trabaje en separado con cada uno de ellos, para luego reunirlos en una prescripción de gafas. Ese procedimiento se puede realizar fácilmente, representando el astigmatismo por un cilindro cruzado y el error esférico por el equivalente esférico de la ametropía astigmática.

Palabras-clave: Astigmatismo; Refratometría; Errores Refractivos;

INTRODUÇÃO

Na forma mais simples, vício de refração é a condição em que o foco do olho cai aquém ou além da retina, gerando com isso imagem desfocada. Corrigir um vício de refração significa colocar o foco do sistema óptico ocular na retina. O poder e o sinal da lente que atende esse objetivo definem a magnitude e a natureza do vício. Entretanto, essas considerações só se aplicam à miopia e à hipermetropia que, por serem neutralizadas com lentes esféricas, configuram o grupo das ametropias esféricas. Um grupo mais sofisticado é o das ametropias astigmáticas, formado por olhos afetados por aberração astigmática. Nesses olhos, a luz refratada pelo sistema óptico ocular gera para cada ponto objeto duas linhas imagens perpendiculares entre si e separadas de distância variável ao longo do seu eixo principal. Como consequência, esses olhos formam, em vez de uma, duas imagens focadas para cada alvo de observação. Apesar disso, nenhuma delas reproduz com fidelidade aquilo que lhes deu origem, por serem formadas por agregados de linhas paralelas, em vez de pontos1. No centro dióptrico do intervalo entre as duas linhas imagens (Intervalo de Sturm) encontra-se um borrão circular denominado círculo de menor confusão (CLC) (Figura 1). O CLC tem duas peculiaridades. O primeiro é que as imagens formadas por ele são constituídas de pontos (não linhas) homogeneamente espalhados, que reproduzem o objeto de fixação da melhor forma possível para um sistema astigmático. O segundo é que essas imagens podem ser transportadas para a retina com lentes esféricas, do mesmo modo como são feitos com os focos das ametropias esféricas1. Essas características revelam-se relevantes ao consideramos que para neutralizarmos a ametropia astigmática é preciso transportar o CLC para a retina com lentes esféricas, ao mesmo tempo em que o intervalo de Sturm é desfeito com lentes cilíndricas.

 


Figura 1. Astigmatismo. A: cilindro negativo alinhado com a linha imagem proximal; B: a linha imagem única de uma lente cilíndrica.

 

Na verdade, a ametropia astigmática nada mais é do que uma ametropia esférica (erro esférico) acompanhada de aberração astigmática (Figura 2). A magnitude da primeira é dada pela distância dióptrica do CLC à retina e a da segunda, pela extensão dióptrica do Intervalo de Sturm. Este artigo trata da forma como separar esses dois componentes para raciocinar separadamente com cada um deles e de como reagrupá-los para a feitura de uma prescrição de óculos consciente.

 


Figura 2. Ametropia astigmática dividida em ametropia esférica e aberração astigmática.

 

Equivalente esférico da ametropia astigmática

O equivalente esférico da ametropia astigmática (EEa) é o poder óptico necessário para colocar o CLC na retina. Ele mede, portanto, o erro esférico embutido na ametropia astigmática. Se o equivalente esférico for positivo, estaremos diante de uma hipermetropia e se for negativo, diante de uma miopia, ambas afetadas pelo astigmatismo.

Dada uma associação esferocilíndrica, o EEa é representado pela soma algébrica da metade do poder do cilindro com o poder da esfera associada. Por exemplo, dada a associação + 4,0 × 2,0 cil 180° o equivalente esférico é calculado da seguinte forma:

Assim, o EEa acima descrito corresponde a um olho hipermetrope de + 3,0 D afetado por uma aberração astigmática que é neutralizada com um cilindro de – 2,0 D cujo eixo esteja orientado a 180°. De posse dessa informação, o refratometrista tem condições de decidir o quanto de hipermetropia irá prescrever, desde que a correção do astigmatismo não altere o equivalente esférico calculado. Na secção subsequente, descrevemos como prescrever o astigmatismo sem alterar o EEa. Para que não haja confusão de conceitos, no exemplo exposto, + 4,0 D é o valor da lente esférica que quando combinada com uma lente cilíndrica de - 2,0 cil 180° corrige a ametropia astigmática. O EEa(+ 3,0 D) é a lente que neutraliza o erro esférico (coloca o CLC na retina) gerado por essa combinação.

 

O CILINDRO CRUZADO COMO REPRESENTANTE DA ABERRAÇÃO ASTIGMÁTICA

Como mencionado anteriormente, neutralizar a aberração astigmática implica em desfazer o Intervalo de Sturm com lentes cilíndricas. Essas lentes cumprem esse objetivo de três maneiras: puxando a linha focal distal no sentido da proximal, empurrando a linha focal proximal para a distal ou fazendo as duas ações simultaneamente. Para maximizar o efeito dessas ações, é preciso alinhar o eixo do cilindro corretor com a linha focal que se deseja mover. Assim, para puxar a linha focal distal na direção da proximal é necessária uma lente cilíndrica convergente, com seu eixo perfeitamente alinhado a ela. Para empurrar a linha focal proximal na direção da distal é necessária uma lente cilíndrica divergente com seu eixo em perfeito alinhamento a ela. Para desfazer o Intervalo de Sturm, atuando em ambas as linhas focais, é preciso usar um cilindro cruzado com o eixo do cilindro convergente alinhado com a linha focal distal e o eixo do cilindro divergente alinhado com a linha focal proximal. Embora os três procedimentos sejam equivalentes na correção da aberração astigmática, apenas o último não altera a posição do CLC em relação à retina e, portanto, não altera o EEa com a correção do astigmatismo. Essa propriedade do cilindro cruzado se deve ao fato de ele ser uma combinação de dois cilindros de mesma graduação, mas com sinais opostos, dispostos perpendicularmente um ao outro. Os cilindros convergentes, quando utilizados isoladamente, desfazem o Intervalo de Sturm aproximando da córnea tanto a focal distal como o CLC; os cilindros divergentes, quando utilizados isoladamente, fazem o mesmo afastando da córnea tanto a focal proximal quanto o CLC.

Uma das características distintivas do cilindro cruzado é que ele pode ser transcrito como uma combinação esferocilíndrica onde a parte esférica é sempre metade da parte cilíndrica, porém com o sinal trocado. Por exemplo, as lentes – 0,5 × + 1,0 cil 180° e + 0.5 × 1,0 cil 45° são cilindros cruzados, por definição. A outra característica do cilindro cruzado é que o seu equivalente esférico (poder médio) é sempre nulo e, precisamente por isso, é que ele não interfere com o equivalente esférico da ametropia astigmática. Neste ponto, é bom lembramos que o conceito de equivalente esférico de uma lente tórica (EEt) é diferente do de uma ametropia (EEa)1. Entretanto, é extremamente fácil converter uma correção cilíndrica em cilindro cruzado. Basta escolher o valor do cilindro e associar a ele uma lente esférica com a metade do seu poder e sinal invertido. Por exemplo, a anotação de um cilindro de – 2,0 cil 180° na forma de um cilindro cruzado corresponde a + 1,0 × 2,0 cil 180°.

 

ANÁLISE E SÍNTESE DA CORREÇÃO ESFEROCILÍNDRICA

Quando uma ametropia astigmática é detectada, é possível separar a aberração astigmática do erro esférico, para trabalharmos separadamente com cada um deles, e depois reagrupá-los em uma prescrição de óculos. Esse procedimento é facilmente realizado, representando o astigmatismo por um cilindro cruzado e o erro esférico pelo equivalente esférico da ametropia astigmática.

Para corrigir total ou parcialmente a ametropia esférica é necessário prescrever o total ou parte do EEa. A decisão sobre uma ou outra opção baseia-se nos mesmos critérios empregados para o olho com hipermetropia ou miopia. Por exemplo, na hipermetropia há a tendência de prescrever-se o total somente em caso selecionados. Mais frequentemente, a quantidade da correção óptica é titulada em função da capacidade acomodativa, equilíbrio oculomotor e exigências visuais do cliente. O mesmo vale para o equivalente esférico positivo. Na miopia, normalmente prescreve-se o total, por não fazer sentido manter a acuidade visual em nível inferior à potencialidade máxima do olho. O mesmo raciocínio se aplica ao equivalente esférico negativo.

Quanto ao astigmatismo, em princípio, procura-se anulá-lo para que se obtenha a melhor visão possível. Entretanto existem situações nas quais optamos pela prescrição parcial do mesmo para diminuir as distorções da correção astigmática. Seja qual for a decisão, o cilindro deve ser sempre transcrito na forma de cilindro cruzado, para que a prescrição não interfira com o equivalente esférico previamente determinado. Resumindo, o procedimento envolve os seguintes passos:

1. Determine o vício de refração do olho.
2. Calcule o EEa para identificar a natureza e o valor do erro esférico.
3. Decida a quantidade de erro esférico a ser corrigido.
4. Decida a quantidade de astigmatismo a ser corrigida.
5. Transforme a correção do astigmatismo em cilindro cruzado.
6. Some a correção do erro esférico com o cilindro cruzado.

No final desses passos, teremos uma prescrição em que se sabe exatamente a quantidade do erro esférico e da aberração astigmática corrigidos.

 

EXEMPLOS

Caso 1. Um olho necessita de +4,0 × - 3,0 cil 180° para a correção total da ametropia. O refratometrista pretende prescrever 3 do astigmatismo e deixar o olho acomodando + 1,0 D para o infinito, alegando que ambos os procedimentos facilitam a aceitação dos óculos. Qual a prescrição que dá a melhor visão a esse olho levandose em conta essas restrições?

O EEa do vício de refração é de , indicando que esse olho é hipermetrope. Para torná-lo hipermetrope de + 1,0 D, que é a restrição imposta pelo problema, precisamos prescrever + 1,5 D. O astigmatismo a ser corrigido é de . Esse valor transcrito na forma de cilindro cruzado corresponde a + 1,0 × 2,0 cil 180°. Somando-se a intenção de correção do erro esférico com o cilindro cruzado obtemos:

A prescrição +2,5 × - 2,0 cil 180° responde à pergunta formulada. Como a prescrição não objetivou corrigir o vício de refração total, sobrou uma ametropia residual de + 1,5 × - 1,0 cil 180°, com o CLC posicionado +1,0 D atrás da retina, fato evidenciado pelo EE = + 1,0 D. O resíduo é calculado subtraindo-se a prescrição desejada do vício de refração, como abaixo:

Por causa do resíduo de astigmatismo deixado, a visão não é tão nítida quanto a oferecida pela prescrição total. Consideramos o Caso 1 como portador de astigmopia hipermetrópica (astigmatismo + hipermetropia).

Caso 2. Um olho necessita de -5,0 cil 180° para a correção total da sua ametropia. O refratometrista pretende prescrever do astigmatismo, alegando que isso facilita a aceitação dos óculos. Qual a prescrição que dá a melhor visão a esse olho levando-se em conta essa restrição?

O EEa desse vício de refração é de . O zero sinaliza a ausência de lente esférica na caracterização da correção do vício de refração. Por causa do sinal negativo do EEa,conclui-se que esse olho é míope. Como a regra é prescrever o total da miopia para garantir a melhor acuidade visual possível, fica definido que prescreveremos o total do EEa. Com esse procedimento teremos o CLC assentado sobre a retina. Por outro lado, o astigmatismo a ser prescrito é de . Esse valor transcrito na forma de cilindro cruzado corresponde a + 1,5 × - 3,0 cil 180°. Somando-se a intenção de correção do erro esférico com o cilindro cruzado obtemos:

A prescrição - 1,0 × - 3,0 cil 180° responde a pergunta formulada. Como a prescrição não objetivou corrigir totalmente a aberração astigmática, que é de 5,0 cil 180°, sobrou uma ametropia residual de + 1,0 ×-2,0 cil 180°, que compromete a visão. Por ser um cilindro cruzado, esse resíduo mostra que o CLC está assentado na retina, como previsto. Por causa do resíduo deixado, a visão não é tão nítida quanto a oferecida pela prescrição total. Consideramos o Caso 2 como portador de astigmopia miópica (astigmatismo + miopia).

Caso 3. Um olho necessita de + 2,5 × -5,0 cil 180° para a correção total da sua ametropia. O refratometrista pretende prescrever o astigmatismo total e não alterar o esforço acomodativo que vem sendo exercido pelo olho. Qual a prescrição que satisfaz as restrições impostas?

O EEa desse vício de refração é de . A conclusão imediata é que o CLC já está sobre a retina, uma vez que o EEa é nulo. O olho não está exercendo esforço acomodativo algum no olhar para

o infinito. Fica claro, portanto, que o EEa não terá influência alguma sobre a prescrição. Prescrevendo o astigmatismo total na forma de um cilindro cruzado obtemos a expressão + 2,5 × -5,0 cil 180° que é a resposta para o problema. Em resumo, o que o refratometrista estava querendo só pode ser conseguido com a prescrição total da ametropia. Consideramos o Caso 3 como portador de astigmopia neutra ou astigmopia pura (astigmatismo + emetropia). As astigmopias neutras são sempre caracterizadas por um cilindro cruzado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O termo astigmatismo é ambíguo por se referir tanto a uma ametropia como à aberração astigmática1. Por outro lado, a ametropia astigmática pode ser interpretada como uma ametropia (ou emetropia) esférica combinada com uma aberração astigmática. A presença de uma ametropia esférica dentro de uma ametropia astigmática exacerba a confusão mental com a terminologia. O termo astigmopia simplifica o assunto pelo fato de distinguir a ametropia da aberração e por prover um nome mais simples para a ametropia astigmática. A astigmopia admite as três formas seguintes: hipermetrópica, miópica e neutra. Nessa linha de raciocínio, o termo astigmatismo deve ser reservado para a aberração óptica.

 

REFERÊNCIAS

1. Faria-e-Sousa SJ, Alves MR. Astigmatismo: Aberração ou Ametropia? eOftalmo. 2018;4(1):26-32. DOI: http://dx.doi.org/10.17545/eoftalmo/2018.0004

Fonte de financiamento: declara não haver Parecer

CEP: não aplicável.

Como citar: Faria-e-Sousa SJ. Astigmatismo: análise e síntese da ametropia astigmática. eOftalmo. 2018: 4(3): 108-112

Recebido em: 4 de Junho de 2018.
Aceito em: 13 de Agosto de 2018.


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